24 abril 2013

Matrimônio - O grande mistério

S. Paulo sintetiza o tema da vida familiar com a expressão: « grande mistério » (Ef 5, 32). O que ele escreve na Carta aos Efésios sobre este «grande mistério», apesar de radicado no livro do Génesis e em toda a tradição do Antigo Testamento, apresenta todavia uma configuração nova, que encontrará depois explicitação no magistério da Igreja.
A Igreja professa que o matrimónio, como sacramento da aliança dos esposos, é um «grande mistério», porque nele se exprime o amor esponsal de Cristo pela sua Igreja. Escreve S. Paulo: «Maridos, amai as vossas mulheres como também Cristo amou a Igreja, e por ela Se entregou, para a santificar, purificando-a no baptismo da água pela palavra da vida» (Ef 5, 25-26). O Apóstolo fala aqui do Baptismo, de que trata amplamente na Carta aos Romanos, apresentando-o como participação na morte de Cristo para partilhar da sua vida (cf. Rom 6, 3-4). Neste sacramento, o fiel nasce como um homem novo, já que o Baptismo tem o poder de comunicar uma vida nova, a própria vida de Deus. O mistério teândrico do Deus-homem está, em certo sentido, compendiado no evento baptismal: «Jesus Cristo, Senhor nosso, Filho de Deus — dirá mais tarde S. Ireneu e, com ele, muitos outros Padres da Igreja do Oriente e do Ocidente — tornou-se filho do homem, para que o homem possa tornar-se filho de Deus» (44).
Assim, o Esposo é o próprio Deus que se fez homem. Na Antiga Aliança, Jahvé apresenta-se como o Esposo de Israel, povo eleito: um Esposo terno e exigente, ciumento e fiel. Todas as traições, deserções e idolatrias de Israel, descritas dramática e sugestivamente pelos Profetas, não conseguem apagar o amor com que Deus-Esposo «ama até ao fim» (cf. Jo 13, 1).
A confirmação e o cumprimento da comunhão esponsal entre Deus e o seu povo verificam-se em Cristo, na Nova Aliança. Jesus assegura-nos que o Esposo está connosco (cf. Mt 9, 15). Está com todos nós, está com a Igreja. A Igreja torna-se esposa: esposa de Cristo. Esta esposa, de que fala a Carta aos Efésios, faz-se presente em cada baptizado e é como uma pessoa em quem o olhar do seu Esposo se compraz: «Amou a Igreja, e por ela Se entregou (...) para a apresentar a Si mesmo como Igreja gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada» (Ef 5, 25.27). O amor, pelo qual o Esposo «amou até ao fim» a Igreja, faz com que esta seja sempre novamente santa nos seus santos, mesmo se não deixa de ser uma Igreja de pecadores. Também os pecadores, «os publicanos e as prostitutas», são chamados à santidade, como o próprio Cristo certifica no Evangelho (cf. Mt 21, 31). Todos são chamados a tornar-se Igreja gloriosa, santa e imaculada. «Sede santos — diz o Senhor — porque Eu sou santo» (Lv 11, 44; cf. 1 Pd 1, 16).
Eis a dimensão mais sublime do «grande mistério», o significado interior do dom sacramental na Igreja, o sentido mais profundo do Baptismo e da Eucaristia. São os frutos do amor, com que o Esposo amou até ao fim; amor que se esparge constantemente, oferecendo aos homens uma participação cada vez maior na vida divina.
Depois de ter dito: «Maridos, amai as vossas mulheres» (Ef 5, 25), S. Paulo, numa expressão ainda mais vigorosa, acrescenta: «Assim, os maridos devem amar as suas mulheres, como aos seus próprios corpos. Aquele que ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Porque ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; pelo contrário, nutre-a e cuida dela, como também Cristo faz à sua Igreja, pois todos somos membros do seu corpo» (Ef 5, 28-30). E exorta os cônjuges com as seguintes palavras: «Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo» (Ef 5, 21).
Esta é, por certo, uma apresentação nova da verdade eterna acerca do matrimónio e da família, à luz da Nova Aliança. Cristo revelou-a no Evangelho, com a sua presença em Caná da Galileia, com o sacrifício da Cruz e os Sacramentos da sua Igreja. Assim os cônjuges encontram em Cristo o ponto de referência para o seu amor esponsal. Ao falar de Cristo Esposo da Igreja, é de modo analógico que S. Paulo se refere ao amor esponsal. Ele reenvia ao livro do Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24). Eis o «grande mistério» do eterno amor já presente na criação, revelado em Cristo e confiado à Igreja. «É grande este mistério — repete o Apóstolo; digo-o, porém, em relação a Cristo e à Igreja» (Ef 5, 32). Portanto, não se pode compreender a Igreja como Corpo místico de Cristo, como sinal da Aliança do homem com Deus em Cristo, como sacramento universal de salvação, sem fazer referência ao «grande mistério», associado à criação do ser humano como homem e mulher e à vocação de ambos ao amor conjugal, à paternidade e à maternidade. Não existe o «grande mistério», que é a Igreja e a humanidade em Cristo, sem o «grande mistério» expresso no ser «uma só carne» (cf. Gn 2, 24; Ef 5, 31-32), isto é, na realidade do matrimónio e da família.
A própria família é o grande mistério de Deus. Como «igreja doméstica», ela é a esposa de Cristo. A Igreja Universal, e nela cada Igreja Particular, revela- -se de maneira mais imediata e concreta como esposa de Cristo na «igreja doméstica» e no amor aí vivido: amor conjugal, amor paterno e materno, amor fraterno, amor de uma comunidade de pessoas e gerações. Porventura será possível imaginar o amor humano sem o Esposo e sem o amor com que Ele amou primeiro e até ao fim? Somente se tomam parte em tal amor e nesse «grande mistério», é que os esposos podem amar «até ao fim»: ou se tornam participantes dele, ou então não conhecem plenamente o que seja o amor nem quanto sejam radicais as suas exigências. Sem dúvida, isto constitui para eles um grave perigo.
A doutrina da Carta aos Efésios encanta pela sua profundeza e força ética. Ao indicar o matrimónio, e indirectamente a família, como o «grande mistério» em relação a Cristo e à Igreja, o apóstolo Paulo pode reafirmar uma vez mais aquilo que tinha dito anteriormente aos maridos: «Pelo que vos diz respeito, ame também cada um de vós sua mulher como a si mesmo»! E acrescenta: «E a mulher respeite o seu marido»! (Ef 5, 33). Ela respeita, porque ama e sabe que é correspondida no amor. É em virtude de tal amor que os esposos se tornam dom recíproco. No amor, está contido o reconhecimento da dignidade pessoal do outro e da sua irrepetível unicidade: de facto, dentre todas as criaturas da terra, cada um deles enquanto ser humano foi escolhido por Deus por si mesmo (45); porém, cada um, por um acto consciente e responsável, faz livremente de si próprio um dom ao outro e aos filhos recebidos do Senhor. S. Paulo prossegue a sua exortação, coligando-se significativamente ao quarto mandamento: «Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, porque isto é justo. "Honra teu pai e tua mãe", que é o primeiro mandamento que tem uma promessa, "para que sejas feliz e tenhas longa vida sobre a Terra". E vós, pais, não exaspereis os vossos filhos mas educai-os na disciplina e correcção segundo o Senhor!» (Ef 6, 1-4). Assim, o Apóstolo vê implícito no quarto mandamento o compromisso do respeito mútuo entre marido e mulher, entre pais e filhos, reconhecendo nele deste modo o princípio da estabilidade familiar.
A maravilhosa síntese paulina a propósito do «grande mistério» apresenta-se como o compêndio, a summa, em determinado sentido, do ensinamento sobre Deus e o homem, que Cristo levou à perfeição. Infelizmente, com o desenvolvimento do racionalismo moderno, o pensamento ocidental foi-se afastando pouco a pouco de tal ensinamento. O filósofo que formulou o princípio «cogito, ergo sum » (penso, logo existo), acabou por imprimir à concepção moderna do homem o carácter dualista que a caracteriza. É típico do racionalismo contrapor radicalmente, no homem, o espírito ao corpo e o corpo ao espírito. O homem, pelo contrário, é pessoa na unidade do corpo e do espírito (46). O corpo nunca pode ser reduzido a pura matéria: é um corpo «espiritualizado», assim como o espírito está tão profundamente unido ao corpo que se pode qualificar como um espírito «corporizado». A fonte mais importante para o conhecimento do corpo é o Verbo feito carne. Cristo revela o homem ao próprio homem (47). Esta afirmação do Concílio Vaticano II, de certo modo, é a resposta, longamente esperada, dada pela Igreja ao racionalismo moderno.
Tal resposta reveste um importância fundamental para a compreensão da família, especialmente no contexto da civilização actual, que, como foi dito, parece ter, em muitos casos, renunciado a ser uma «civilização do amor». Grande foi, na era moderna, o progresso no conhecimento do mundo material, e também da psicologia humana, mas quanto à sua dimensão mais íntima, a dimensão metafísica, o homem de hoje permanece em boa parte um ser desconhecido para si mesmo; consequentemente, uma realidade desconhecida permanece também a família. Isto verifica-se por causa do afastamento daquele «grande mistério» de que fala o Apóstolo.
A separação entre espírito e corpo no homem teve como consequência a afirmação da tendência a tratar o corpo humano não segundo as categorias da sua específica semelhança com Deus, mas segundo aquelas da sua semelhança com todos os outros corpos presentes na natureza, corpos que o homem utiliza como material para a sua actividade destinada à produção de bens de consumo. Mas facilmente todos se podem dar conta de quanto a aplicação ao homem de tais critérios esconda realmente enormes perigos. Quando o corpo humano, considerado independentemente do espírito e do pensamento, é utilizado como material ao mesmo nível do corpo dos animais, — como sucede, por exemplo, nas manipulações sobre os embriões e os fetos — inevitavelmente caminha-se para um terrível descalabro ético.
Numa tal perspectiva antropológica, a família humana está a viver a experiência de um novo maniqueísmo, no qual o corpo e o espírito são radicalmente contrapostos entre si: nem o corpo vive do espírito, nem o espírito vivifica o corpo. Assim o homem deixa de viver como pessoa e sujeito. Apesar das intenções e declarações em contrário, torna-se exclusivamente um objecto. Assim, por exemplo, esta civilização neo- -maniqueísta leva a olhar a sexualidade humana mais como um campo de manipulação e desfrutamento, do que a olhá-la como a realidade geradora daqueleassombro primordial que, na manhã da criação, impele Adão a exclamar à vista de Eva: «É carne da minha carne e osso dos meus ossos» (cf. Gn 2, 23). É o mesmo assombro que ecoa nas palavras do Cântico dos Cânticos: «Arrebataste o meu coração, minha irmã, minha esposa! Arrebataste o meu coração com um só dos teus olhares» (Ct 4, 9). Como estão distantes certas concepções modernas da profunda compreensão da masculinidade e da feminilidade oferecida pela Revelação divina! Esta leva-nos a descobrir na sexualidade humana uma riqueza da pessoa, que encontra a sua verdadeira valorização na família e exprime a sua vocação profunda mesmo na virgindade e no celibato pelo Reino de Deus.
O racionalismo moderno não suporta o mistério. Não aceita o mistério do ser humano, homem e mulher, nem quer reconhecer que a plena verdade do homem foi revelada em Jesus Cristo. Não tolera, em particular, o «grande mistério» anunciado pela Carta aos Efésios, e combate-o radicalmente. Num contexto de vago deísmo, reconhece a possibilidade ou mesmo a necessidade de um Ser supremo divino, mas recusa decididamente a noção de um Deus que se faz homem para salvar o homem. Para o racionalismo, é impensável que Deus seja o Redentor, e menos ainda que seja «o Esposo», a fonte originária e única do amor esponsal humano. Aquele interpreta a criação e o sentido da existência humana de maneira radicalmente diversa. Mas, se faltar ao homem a perspectiva de um Deus que o ama e, por intermédio de Cristo, o chama a viver n'Ele e com Ele, se à família não for aberta a possibilidade de participar no «grande mistério», o que é que resta senão a mera dimensão temporal da vida? Resta apenas a vida temporal como campo de luta pela existência, de procura ansiosa do lucro, sobretudo do lucro económico.
O «grande mistério», o sacramento do amor e da vida, que tem o seu início na criação e na redenção e cujo garante é Cristo-Esposo, perdeu na mentalidade moderna as suas raízes mais profundas. Está ameaçado em nós e à nossa volta. Possa o Ano da Família, celebrado na Igreja, tornar-se para os esposos uma ocasião propícia para o redescobrir e reafirmar com vigor, coragem e entusiasmo.


CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
ÀS FAMÍLIAS



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