Veja o cuidado que Jesus tem para com seus seguidores.
O Pão da Vida, não admite que passem fome aqueles que o seguem.
Evangelho da encarnação, da Palavra que se fez carne, de Deus que se fez gente, o evangelho segundo João é o que mais aprofunda a transparência divina das realidades humanas. Cada uma dessas realidades, tocadas por Jesus, se transforma em sinal: são sinais da sua glória, como o foi a água transformada em vinho, em Caná; como o foi ainda a água, pedida e oferecida à samaritana, junto ao poço de Jacó; como o foi o paralítico curado à beira da piscina de Betesda, ou o cego de nascença, na fonte de Siloé; ou como os cinco pães, multiplicados para a multidão, nas colinas da Galiléia. São sinais que tantos viram, tantos presenciaram, mas não entenderam. E não entenderam porque não creram, não abriram o coração à fé.
Estrutura de João 6
O capítulo 6 de João começa abordando um fato notório na vida pública de Jesus: o milagre da multiplicação dos pães, narrado também pelos outros evangelistas. Aliás, Marcos e Mateus transmitem até duas versões do mesmo fato. A diferença entre João e os sinóticos, porém, está em que João não apenas
narra o episódio, mas reflete longamente sobre o seu significado, exatamente, a sua transparência. É por isso que, se ele dedica 15 versículos à narração do fato, estende-se por mais 50 versículos discutindo, refletindo, aprofundando o “sinal”.
Temos, assim, a seguinte estrutura do capítulo 6 do seu evangelho:
1) o sinal:
a) sinal dos pães (6,1-15)
b) sinal da travessia do mar (6,16-21)
2) o discurso do Pão da Vida:
a) discurso sapiencial (6,22-51)
b) discurso sacramental (6,51b-58)
3) reações ao discurso:
a) abandono de muitos (6,60-66)
b) confissão de Pedro (6,67-71)
Compraremos pão, onde?
Como em outras passagens do quarto Evangelho, é Jesus quem toma a iniciativa e conduz os fatos.
Se em Marcos são os discípulos que observam a necessidade de alimentar a multidão e Jesus devolve a eles a responsabilidade (“Dai-lhes vós mesmos de comer”, Mc 6,37), em João é o próprio Jesus quem adverte para o problema e, após levantar algumas informações, encaminha a solução.
A própria distribuição dos pães é feita, não através dos discípulos, como em Marcos, mas diretamente por Jesus:
- é Ele quem distribui a todos o pão abençoado (6,11).
E é Ele, enfim, quem tem o cuidado de mandar recolher o que sobrou, para que nada se perca (6,12).
Os quatro sentidos do pão
Ao reencontrar a multidão em Cafarnaum, depois da travessia do lago, Jesus os questiona: “Vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque enchestes o estômago... Trabalhai, não pelo alimento que perece, mas pelo pão que permanece até a vida eterna” (6,26-27). Com essas palavras, Jesus convida seus ouvintes a abrirem os olhos:
- a perceberem novas dimensões, novos sentidos, na vida e no próprio alimento material que a sustenta.
Aliás, Moisés já o fizera no Deuteronômio, fazendo ver a seu povo no deserto:
- “Não só de pão vive o ser humano, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3).
Agora, depois de alertar para um pão diferente (6,26-29), Jesus vai conduzindo seus ouvintes à revelação direta e inesperada: Ele mesmo, Jesus, é esse Pão que permanece, o Pão da Vida (6,35).
Mais um passo, e Jesus revela o terceiro nível do sentido do pão:
- esse pão é o próprio Jesus que se entrega, a sua carne, imolada pela vida do mundo (6,51b).
Mas não basta. É preciso, agora, comer da carne imolada, e beber do sangue derramado do Filho do Homem: é a dimensão ritual, sacramental, da Eucaristia (6,53-58).
Comer da carne, beber do sangue
Quando Jesus revelou que o pão a ser comido era a sua “carne”, isto é, o seu corpo imolado, os ouvintes não conseguiram entender. Jesus, porém, insiste e, de maneira incisiva, revela que “comer da carne” e “beber do sangue” do Filho do Homem é condição indispensável para termos a Vida em nós (6,53). Que significa isto? A resposta óbvia é que o fazemos, agora, cada vez que participamos da Eucaristia.
É novamente João, na sua primeira carta, quem nos adverte:
- “Se Ele deu a vida por nós, também nós devemos dar a nossa vida pelos irmãos e irmãs” (lJo 3,16).
Se não o fazemos, não estamos “discernindo o corpo do Senhor”, como nos alerta Paulo na sua Primeira Carta aos Coríntios, e nos expomos até a “comer e beber a nossa própria condenação” (1 Cor 11,29).
Promessa e instituição
As palavras de Jesus em Cafarnaum, em plena atividade da sua vida pública, anunciam a Eucaristia como futura, evidentemente:
“O pão que eu darei...” (6,51b).
Onde encontramos sua realização, ou seja, a instituição da Eucaristia? Não a encontramos em João. O quarto evangelho, que descreve, de maneira tão bela, a última ceia, e que aí apresenta o lava-pés, com o mandamento do amor fraterno, não relata a instituição da Eucaristia. Por que João a omitiu?
Por que não sentiu a necessidade de recordar esse gesto supremo de Jesus antes de sua paixão, quando ele “tomou o pão, deu graças, partiu-o e deu-o aos discípulos, dizendo:
- Tomai e comei, isto é meu corpo, tomai e bebei, isto é meu sangue...”?
Não sabemos por que não o fez. O fato é que ele, que no capítulo 6 expõe de maneira tão concreta e exigente o significado da Eucaristia, não sentiu a necessidade de recordar a cena da sua instituição, cena e rito, por sinal, de uso comum nas comunidades cristãs. E assim é que temos o relato da instituição na Primeira Carta aos Coríntios (1 Cor 11,23-25) e nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas, mas não no de João.
A carne para nada serve
Diante do escândalo causado por suas palavras, que falavam em “comer da carne” e “beber do sangue”, Jesus adverte, embora sem retirar vírgula do que dissera:
“É o Espírito que vivifica. A carne, para nada serve” (6,63).
Palavras que, porém, não devem ser “espiritualizadas”, porque não se deve tirar da “carne” a concretude da condição humana, assumida e redimida pelo Filho. Jesus adverte que suas palavras não devem ser entendidas, “carnalmente”, e sim naquele sentido profundo que só a fé, dom do Pai, faz entender.
É o que Jesus afirma a seguir, lembrando:
“Por isto vos afirmei que ninguém pode vir a mim, se isto não lhe for concedido pelo Pai” (6,65).
A confissão de Pedro e o nosso ato de fé
Incapazes de entender a proposta de Jesus, muitos de seus discípulos, a partir de então, o deixaram. Isto é, não se dispuseram a entender e aceitar o mistério do Messias padecente, de Jesus que nos salva pela entrega de sua vida e quer que nós também salvemos, entregando a nossa vida. Jesus urge uma definição dos Doze.
E Pedro, certamente sem entender de modo cabal a proposta, mas pelo menos com generosidade inspirada pelo Pai, responde:
- “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras vida eterna, e nós cremos e reconhecemos que tu és o Santo de Deus!” (6,68-69).
Esta cena corresponde àquela que os sinóticos situam em Cesaréia de Filipe onde Pedro, também em nome de seus companheiros, confessa e aceita a messianidade de Jesus. É a confissão de fé que nós individualmente reafirmamos, cada vez que nos dispomos a comungar, quando o ministro nos apresenta o corpo do Senhor. O nosso “Amém”, que é o nosso “Creio”, é também o nosso compromisso, a nossa aceitação da proposta de Jesus, o Pão da Vida.
Ney Brasil Pereira é professor de Exegese Bíblica no ITESC
Fonte: PIME
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