Poderá parecer um sofisma, mas é fato claro que não
se perde nunca ocasião para fazer com que o significado de certos termos
seja substituído exatamente pelo seu oposto com a finalidade de anular
contemporaneamente o sentido dos valores que tal significado sugere e
mantém. E isto é o que vem ocorrendo com os termos "Tradição e Verdade",
que por seu constante uso e abuso acabaram se tornando para alguns
quase que um sinônimo de "rotina", "folclore", "superstição" enquanto
que para outros, uma simples questão de opinião, pensamento subjetivo ou
especulação intelectual.
Com isso, de forma alguma pretendemos exercer o papel
de defensores exclusivos da Tradição e da Verdade, pois temos
constantemente diante dos nossos olhos a consciência de nossos próprios
limites e fraquezas humanas. Pois exatamente por estarmos conscientes do
fato de que também padecemos de uma profunda sede de Tradição e de
Verdade, é que todo nosso esforço será dirigido no sentido de obter o
máximo de elementos que possam servir-nos de ponto de referência para
acrescentar àquele pouco que sabemos o que tanto necessitamos.
De tudo quanto nos rodeia hoje em dia, o que será que
pode nos ajudar nesse sentido? Será que existem também expressões
corriqueiras no ensinamento religioso? Quanto da vida que levamos é
moldada pelos princípios que descendem diretamente da Verdade e da
Tradição? De fato, essas são perguntas muito difíceis de se fazer e mais
complicadas ainda são as respostas.
Diante das leituras do Santo Evangelho de cada
Domingo, as quais parecem nos falar com tal clareza, com tal
simplicidade e com tal determinação, nosso embaraço aumenta ainda mais.
Se pensarmos por exemplo na fórmula de Consagração do Cânon da Santa
Missa, veremos que ela toma passagens dos Evangelhos que nos remetem às
mesmíssimas palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 26, 26-29; Mc 14,
22-25; Lc 22, 19-20) desde o dia em que Ele as pronunciou e que os
Santos Apóstolos repetiram em todos os ritos do Santo Sacrifício,
exatamente do mesmo modo como Ele ordenou.
Passaram-se anos, séculos, milênios e sempre as
mesmas palavras, sempre os mesmos gestos, sempre as mesmas espécies do
vinho e do pão; dos Apóstolos para os Bispos, dos Bispos para os
sacerdotes, dos sacerdotes para os fiéis. Por quase dois milênios tem
sido repetido e transmitido o mesmo rito instituído por Nosso Senhor
Jesus Cristo. Eis aí uma Tradição bem arraigada, poderíamos dizer!
É fato real que um rito tão essencial para a Igreja e
para a salvação dos Cristãos, é sem sombra de dúvida, uma Tradição
antiga, arraigada e universalmente reconhecida. Mas agora nos
perguntamos: sobre o que se fundamenta todo o seu valor tradicional?
Sabemos que o próprio Magistério da Igreja envolve também todos aqueles
ensinamentos escritos e orais que vem desde os Padres da Igreja. Ah! A
Tradição dos Padres da Igreja! Mas também aqui nos perguntamos: sobre o
que se fundamenta todo o valor tradicional do ensinamento dos Padres?
Será que se as palavras da Consagração não tivessem sido pronunciadas
pessoalmente por Nosso Senhor Jesus Cristo, teriam ainda o mesmo valor
apenas pelo simples fato de estarem sendo repetidas por quase dois mil
anos? Se os ensinamentos dos Padres da Igreja não transmitissem o mesmo
ensinamento dado por Nosso Senhor Jesus Cristo aos Apóstolos, será que
teriam o mesmo valor apenas pelo simples fato de terem sido formulados
por homens piedosos e santos e que foram aceitos e repetidos por quase
dois mil anos?
Na realidade, a Santa Igreja nunca usou esses termos
por mero acaso. Esta sempre esteve consciente de que o uso de
determinado termo deve corresponder, inevitavelmente, a algo real e
verdadeiro. A Tradição dos Padres então não é outra coisa senão a
transmissão fiel do ensinamento divino que nos foi doado pela Vontade
imperscrutável do Pai por meio do Seu Filho, e Este por sua vez o
transmitiu à sua Igreja para a salvação dos homens. Aqui está todo o
sentido da Tradição: uma corrente ininterrupta de transmissão que nos
vincula diretamente ao ensinamento divino e consequentemente à Verdade.
Daí deriva-se, no sentido inverso, que toda a formulação da Verdade e
toda concessão relativa a essa, encontra justificativas apenas no
respeito por essa real e precisa transmissão, sem a qual corremos o
risco de nos depararmos com qualquer coisa meramente de caráter humano,
que somente por uma intervenção especialíssima do Espírito Santo teria
condições de aderir corretamente à única Verdade e ainda neste caso não
se trataria da ação do homem, mas sim da ação divina manifestada por
meio da Terceira Pessoa da S.S Trindade. Ainda que tal prática ou
costume tivesse um uso consolidado há milênios ( coisa jamais ocorrida
na Cristandade), ainda que estivesse arraigada na "alma popular", ainda
que se tratassem de gestos ou comportamentos exemplares imitados,
repetidos ou recordados; é possível falar de Tradição apenas na presença
de um "traditum"( que deriva do latim: TRADERE e significa: entregar,
consignar, confiar, transmitir), isto é , só diante de algo que vem
transmitido e do qual nenhum homem tem a autoria, de algo que pelo
simples fato de ser transmitido ao homem, necessariamente tem sua origem
além do humano, ou seja, procede do divino.
Somente desse modo é possível falarmos de gestos
tradicionais, de ensinamentos tradicionais, de sinais tradicionais,
dessas coisas que são as únicas que estão em grau de nos vincular à
Verdade, pelo simples fato de que essas possuem sua origem na Verdade e
que em última análise, são ambas uma coisa só.
Qualquer outro uso dos termos "Tradição" e
"tradicional", diferente de tudo o que foi dito acima, não pode ser
outra coisa senão causa de incompreensão, fator de desordem, elemento de
desvios, não obstante qualquer boa intenção, da qual como bem sabemos, o
caminho do inferno está bem pavimentado.
Logo no início já havíamos dito que hoje em dia, e
pra ser mais exato, já há alguns séculos, está em ação uma perniciosa
tendência ao desvio, que se serve principalmente do uso distorcido de
terminologias e não nos parece estarmos exagerando ao denunciarmos as
contradições existentes atualmente entre certos hábitos caducos que são
rotulados impropriamente de tradicionais. Há quem ainda tenta argumentar
que a Tradição, nas suas expressões e em suas modalidades externas,
necessariamente se renova e até que ela "deve" renovar-se ( aquele velho
ditado de que tudo que é novo é belo) sem que por isso haja
necessariamente algum prejuízo para a Verdade.
Sem dúvida isso pode até ser verdade, antes, é algo
estreitamente conexo à própria natureza da vida humana, com suas
mudanças espaciais e temporais; mas o problema aqui é todo de uma outra
natureza. Aqui não se trata de menosprezar as adaptações de expressões e
formas que nos vinculam à Única Verdade. De fato, a Santa Igreja sempre
esteve atenta a que se considerasse sempre as diversidades e mudanças
humanas. Trata-se muito mais de levar em conta que é a Tradição que
engloba em si mesma expressões e modalidades diversificadas , posto que
essa, derivando diretamente da Verdade, não pode conter outra coisa
senão todas as possíveis variações passadas, presente e futuras.
Algo bem diferente é ao invés, o convencimento de que
mutáveis condições da vida humana tenham o poder, pelo simples fato de
existirem, de dobrar a Tradição às exigências humanas, o que seria o
mesmo que dizer que não é Deus quem forma a vida dos homens, mas a vida
dos homens é que modela o seu próprio deus e o modo como esse deve ser
cultuado. Aliás uma teoria que em si mesma não tem nada de novo ( ainda
que afirmem ao contrário os "progressistas" e "modernistas" de plantão)
pois o fato mais comum na história da humanidade é que o homem sempre
tenha tido a pretensão de modelar o seu próprio deus. Infelizmente o que
muitos se esquecem é que em todas essas tentativas a punição divina
nunca falhou em cair sobre os temerários pecadores.
Para concluir nos parece oportuno usar um exemplo que
nos ajuda a ilustrar o quanto tem fundamento a preocupação expressa
nesse pequeno texto. Quem quer que seja que tenha assistido a Santa
Missa celebrada segundo o Novo Ordinário de Paulo VI, com certeza teve a
oportunidade de notar que no momento da Consagração, ao pronunciar as
palavras proferidas por Nosso Senhor Jesus Cristo na Última Ceia, o
sacerdote, antes de elevar o Cálice, diz: "Este é o Sangue da nova e
eterna aliança, derramado por vós e por TODOS em remissão dos pecados".
Ora , o texto em latim da Consagração, retomando os Evangelhos que
citamos anteriormente dizem: Hic est enim Calix sanguinis mei,
novi et æterni testamenti: mysterium fidei: qui pro vobis et pro multis
effundetur in remissionem peccatorum.
Convenhamos, não temos a pretensão de elucidar uma
velha questão de exegese de textos a respeito do verdadeiro sentido do
termo grego que o texto em latim traduz como MULTIS, mas queremos ao
invés sublinhar o fato de que a Tradição da Santa Igreja, bem conhecendo
por direta transmissão Apostólica o significado exato das palavras de
Nosso Senhor Jesus Cristo, manteve como correto o uso do termo MULTIS
porque esse era aquele que em latim expressava o verdadeiro sentido das
palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eis que então a Tradição, vínculo
da Verdade, se adaptava à diversidade expressiva e, como as palavras de
Nosso Senhor Jesus Cristo já haviam sido traduzidas do aramaico para o
grego, do mesmo modo foram para o latim conservando íntegro o sentido
original desejado por Deus.
E mesmo assim, ainda que por quase dois milênios e
até hoje no Oriente, se mantivesse como correto pronunciar e transmitir
que o Sangue de nosso Salvador foi e é derramado pelos discípulos e por
MUITOS, a um certo ponto, visto que os homens inventaram novas técnicas
de interpretação para os Livros Sagrados, eis que de repente se descobre
que o termo MULTIS não é correto: pouco importa que assim tenham dito
os Apóstolos! Pouco importa que assim tenham transmitido os Padres da
Igreja! Pouco importa que assim continuaram a repetir todos os Santos,
todos os Papas, todos os Bispos! Visto que o homem moderno se retém
capaz de compreender melhor do que ninguém o verdadeiro significado dos
Livros Sagrados e visto que essa sua pretensão o torna "infalível", não
existe outra solução senão dobrar a Tradição à sua ciência e ao seu
poder!
Mas bem sabemos que algo que nos foi sempre ensinado e
constantemente recordado é que a Santa Igreja tem o dever único de
conservar e transmitir tudo aquilo que nos foi consignado pela Vontade
Divina, mesmo diante das mais intelectuais e aparentes discrepâncias
exegéticas. O que já não poderíamos dizer dessa pretensa "exatidão da
ciência" exegética, sujeita a contínuas mudanças e influenciada pelas
"tendências" e por opiniões freqüentemente divergentes, que se arroga o
caráter de exatidão ou o mérito de ciência.
A esse ponto será que podemos dizer que o uso
invasivo por trinta anos, das novas palavras da Consagração já se
tornaram Tradição da Santa Igreja? Afinal é assim que se exprime todos
os dias também nos seminários e nas Cúrias! A Tradição se modifica,
evolui... é o que dizem! A Tradição adapta suas expressões mantendo
intactos os seus ensinamentos... é como defendem!
Ai daqueles que pretendem mudar uma só vírgula do
conteúdo e significado dos ensinamentos da Tradição!! A conseqüência
seria a mais desastrosa e ao mesmo tempo a mais ridícula, pois
acarretaria numa mudança da Verdade; o que por um lado seria um delito
contra Deus e por outro, exprimiria uma diabólica contradição, porque a
Verdade é Una e Única, como Um é o Caminho e a Vida: Nosso Senhor Jesus
Cristo, o nome diante do qual todo joelho se dobra no céu, na terra e
nos infernos e toda língua confessa para a Glória de Deus Pai (Fil. 2,
10-11).
Tradição e Verdade são sem dúvida dois termos tão
conexos que enquanto em linha descendente não pode existir verdadeira
Tradição que não seja expressão da Verdade e sua direta emanação, em
linha ascendente, que é aquela que realmente interessa àqueles que estão
em busca da Vontade de Deus de coração puro e espírito humilde, não
pode dar-se uma fiel abordagem da Verdade sem o obséquio, sem o
conhecimento e a adesão à Tradição, que é o único veículo que a Essa
conduz. Em outras palavras: Nulla Veritas sine Traditione. C. C.
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