17 junho 2015

Lutero e o cânon mutilado (Parte II)



Na primeira parte (clique aqui) deste estudo sobre o cânon da Sagradas Escrituras, vimos que quando o cristianismo surgiu não existia ainda um cânon oficial entre os judeus: de acordo com o partido ou seita ou grupo judaico (fariseus, saduceus, essênios, judeus de Alexandria), a relação dos livros inspirados variava bastante. Simplificando, poderíamos dizer que havia basicamente um cânon de língua grega, mais amplo, e um de língua hebraica, mais curto. Os cristãos, como começaram logo a pregar o Evangelho por todo o Império Romano, que falava o grego, utilizavam o mais longo: o cânon dos judeus de Alexandria. Somente após o ano 70 e, de modo definitivo, somente no final do século III, os judeus foram chegando a um acordo sobre quais seriam os livros inspirados para o judaísmo. Mas tal decisão já não tinha mais valor algum para os cristãos que, desde o “concílio” de Jerusalém, haviam rompido totalmente com o judaísmo (cf. At 15,1-29): o cristianismo não é uma seita judaica, mas algo novo: vinho novo que não poderia jamais ficar guardado nos velhos odres do judaísmo (cf. Mt 9,17)! Por isso mesmo, a Igreja de Cristo continuou, tranqüilamente, usando o cânon mais longo, que incluía os sete livros, posteriormente chamados “deuterocanônicos”, bem como trechos de Ester e Daniel, que os judeus já não mais consideravam inspirados. Assim, o Antigo Testamento judaico é mais curto que o cristão: tem sete livros a menos! Vimos ainda como isso ficou claro cada vez mais para a Igreja antiga e como vários antigos documentos magisteriais confirmam o cânon completo das Escrituras Sagradas.

Ora, no século XVI, com a Reforma Protestante, Lutero, Calvino e os demais reformadores, cometeram o grave erro (entre outros erros graves!) de refutar arbitrariamente o cânon da Igreja para abraçar o cânon dos judeus, particularmente, o cânon dos fariseus, que, como vimos, foi o que se impôs no seio do judaísmo! Na disputa de Lipsia, em 1519, entre Lutero e João Eck, o fundador do protestantismo colocou em dúvida pela primeira vez o valor de 1 e 2 Macabeus para justificar sua recusa em aceitar a oração pelos mortos e as indulgências. Lutero, talvez sem perceber a gravidade de sua atitude, estava manipulado o cânon bíblico cristão! Pior ainda: estava refutando o Antigo Testamento cristão para abraçar o dos fariseus! Para sustentar sua posição, ele apelou para a opinião de São Jerônimo que, como já vimos no artigo passado, por influência dos rabinos, preferia o cânon mais curto. No entanto, Lutero esqueceu (ou não quis recordar!) que se tratava de uma opinião privada de São Jerônimo e não de uma convicção de toda a Igreja! O próprio Jerônimo, por ordem dos bispos, havia traduzido para o latim o Livro de Tobias. E explicava: “É melhor desagradar a opinião dos fariseus e atender às ordens dos bispos”. Infelizmente Lutero não atendeu ao sábio conselho de Jerônimo! Ainda assim, Lutero conservou os sete livros, colocando-os no final da sua Bíblia, como sendo úteis para a edificação. Ele dizia: “não devem ser considerados como Sagrada Escritura, mas são bons e se podem ler com utilidade”. Já Calvino não os aceitava de modo algum. Quanto ao Novo Testamento, Lutero e outros reformadores alemães rejeitaram a Epístola de Tiago, Judas, Hebreus e o Apocalipse! Também estes livros inspirados por Deus e reconhecidos pela Igreja, Lutero os relegou a um segundo plano, colocando-os no final da sua Bíblia, abaixo do que ele considerava “os verdadeiros, seguros e mais importantes livros do Novo Testamento”. Somente no século XVII (cerca de cem anos após Lutero) os luteranos voltaram ao cânon completo do Novo Testamento, que seu mestre e fundador havia mutilado. Quanto ao Antigo Testamento, ainda hoje os protestantes o conservam mutilado, incompleto devido à arbitrariedade dos reformadores!

Mas, que argumentos os protestantes usam ainda hoje para teimarem mutilando a Escritura?

1. Os sete livros deuterocanônicos não são citados pelo Novo Testamento. Tal argumento é completamente furado. Primeiro porque já vimos no artigo passado que há várias alusões a trechos desses livros no Novo Testamento. Em segundo lugar, o Novo Testamento também não cita Abdias, Naum, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Ester, Esdras, Neemias e Rute, livros que também os protestantes têm como inspirados! Além do mais, os Atos dos Apóstolos citam o poeta grego Epidênides de Cnossos (cf. Tt 1,12s) e Arato da Cicília (cf. At 17,28) e nenhum destes dois é inspirado! Também a Epístola de Judas cita os apócrifos do Antigo Testamento “Assunção de Moisés” (cf. v. 9) e o “Apocalipse de Henoc” (cf. v. 14). Então, o fato de o Novo Testamento citar ou não alguma obra não serve para afirmar se ela é ou não inspirada!

2. Alegam os protestantes que o cânon bíblico dos judeus de Alexandria continha livros que a Igreja católica não aceita (3 e 4 Esdras, 3 e 4 Macabeus, Odes de Salomão, etc). Por que, então, aceitou os outros sete deuterocanônicos? Aí está exatamente a questão! A Igreja de Cristo nem estava presa ao cânon dos fariseus da Palestina nem ao cânon dos judeus de Alexandria! Somente sustentada pelo Espírito Santo que Cristo prometeu dar-lhe e que permanece para sempre com ela (cf. Jo 14,16s; 16,12-15; At 15,28), é que a Comunidade dos discípulos de Cristo, juntamente com seus legítimos pastores, pode discernir quais são os livros inspirados, os livros segundo Cristo! Aqui está a enrascada, o nó cego dos protestantes: como eles não aceitam a autoridade da Igreja, como não reconhecem que o Espírito do Senhor jamais a abandonou e como negam que este Santo Espírito sustenta os legítimos sucessores dos apóstolos, eles não podem apelar para nenhuma autoridade para defender o seu cânon mais curto e mutilado! Onde é que está escrito na Bíblia quais são os livros da Bíblia? Em lugar nenhum! E como sabemos quais são os livros da Bíblia? Sabemo-lo pela palavra da Igreja! Mas, os protestantes rejeitam a palavra de Igreja... e preferem apoiar-se no cânon dos fariseus! É interessante notar que, por isso mesmo, por desprezar a Tradição da Igreja e querer seguir sua própria cabeça, Lutero cometeu o erro de rejeitar vários livros do Novo Testamento... que depois seus seguidores aceitaram! Os protestantes erraram quanto ao Novo Testamento e continuam errando quanto ao Antigo! Por isso mesmo os grandes teólogos protestantes ainda hoje não se entendem quanto ao problema do cânon. Por exemplo, H. Strathmann reconhece (são palavras dele!) que a questão de decidir os livros canônicos é “uma latente doença da teologia evangélica, e portanto, da Igreja evangélica, a saber, a confusa questão de suas relações com respeito aos documentos de sua origem, isto é, o cânon bíblico”. Já W.G.Kümmel - também protestante -, afirma que o cânon é “uma criação consciente da Igreja e, portanto, é sujeito a uma contínua revisão”. Ou seja: para ele o cânon pode ser modificado quando a Igreja quiser! Aliás, foi o que Lutero fez! É interessante que muitos teólogos protestantes defendem que se estabeleça um “cânon no cânon”! Que bicho é esse? Seria, no Novo Testamento, considerar uns livros como principalmente inspirados e, outros, menos inspirados!

Ao final desta apresentação, uma coisa deve ficar clara: a Igreja de Cristo – e somente ela – poderia, escutando o Espírito, definir o cânon. E ela o fez! A atitude de Lutero rompeu com a antiga Tradição eclesial e mutilou a Palavra de Deus. O resultado é trágico: nos meios cultos protestantes ainda hoje não se tem certeza quais sejam os livros inspirados e, alguns, escolhendo entre Palavra de Deus e Palavra de Deus, selecionando o que agrada e deixando de lado o que desagrada, querem inventar um cânon no cânon, fruto de pura arbitrariedade humana. Esta situação nos coloca mais uma vez em guarda: não se pode refutar a Igreja de Cristo e a guia de seus legítimos pastores, os Bispos em comunhão com o Sucessor de Pedro, sem cair em sinuosas esparrelas! É triste que logo os protestantes, que amam tanto a Palavra de Deus, a mutilem e que os livros que contêm esta Palavra sejam, no dizer de um protestante – como já vimos acima – “uma latente doença da teologia evangélica, e portanto, da Igreja evangélica”!



De: domhenrique.com.br

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