SAGRADA ESCRITURA
M. C. S. (Rio de
Janeiro): “Visto que os antigos
frequentemente admitiam o nascimento virginal de seus heróis, não seria o
propalado nascimento virginal de Cristo mero produto da imaginação de seus
discípulos?”
A resposta apresentará primeiramente os fundamentos
bíblicos da crença na maternidade virginal de Maria; a seguir, examinará as
hipóteses que tentam explicar essa crença qual mito inspirado pelas antigas
concepções pagãs; por fim, proferir-se-á um juízo sobre a questão.
1.
Os fundamentos bíblicos da fé no nascimento virginal de Cristo
a) É principalmente o texto de Lc
1,34s que interessa ao exegeta no caso. Eis o que se sucedeu a primeira
comunicação feita a Maria, de que daria à luz um filho (v. 31):
34 “Disse Maria ao anjo; 'Como se fará
isso, pois que não conheço varão?'
35 Respondeu-lhe o anjo : 'O Espírito Santo
descerá sobre ti e o poder do Altíssimo te recobrirá com a sua sombra; por isto
o menino que de ti nascer, será santo; será chamado Filho de Deus' ”.
A pergunta formulada no v. 34 por Maria não significa
dúvida a respeito da promessa de Deus, mas versa sobre a maneira como poderá
dar à luz; Maria não conhece varão. A expressão, no texto grego de S. Lucas,
tem sentido correspondente ao da locução paralela hebraica: designa as relações
conjugais (cf. Gên 19,8; Num 31,17; Jdt 11,39). Maria, portanto, afirma ao anjo
que ela não vive conjugalmente de sorte a poder conceber (é propriamente
virgem, conforme Lc
1,27) e parece ter feito o propósito de permanecer neste estado, pois não
vê como se poderá tornar mãe, embora haja sido dada em casamento a José (com o
qual deverá começar a coabitar em breve). Bons exegetas entendem as palavras de
Maria no v. 34 como reafirmação de um voto de virgindade propriamente dito
(admitida esta sentença, acrescentar-se-á que Maria aceitou o matrimônio com
São José a fim de se eximir de solicitações importunas, tendo naturalmente
entrado em acordo prévio com o futuro esposo).
A resposta do anjo assegura à Virgem que pode estar tranquila,
pois conceberá sem concurso de varão e, sim, por intervenção direta de Deus: o
Espírito Santo prepararia suas entranhas puríssimas para receber o Filho de
Deus, e o poder do Altíssimo a recobriria com a sua sombra. O «recobrir com a
sombra» é expressão baseada na descrição das solenes intervenções de Deus ou
teofanias do Antigo Testamento (cf. Ex 40,35; Num 9,22; também a narrativa da
Transfiguração em Lc
9,34s); significa de maneira delicada a ação de Deus entre as criaturas. Em
resumo, pois, o anjo afirma a Maria, evitando todo antropomorfismo grosseiro,
que ela será preparada a gerar Jesus por ação extraordinária do Todo-Poderoso,
ação que dispensará toda a colaboração marital.
b) Faz eco a Lc 1,34s o texto de Mt
1,16.18-23.
Em Mt 1,16 o Evangelista rompe o estilo da série genealógica
apresentada, conforme o qual deveria dizer : «Eliud gerou Eleazar, Eleazar
gerou Matã, Matã gerou Jacó, Jacó gerou José, José gerou Jesus, que é chamado
Cristo». Embora a versão síria sinaítica (e esta só, dentre a multidão dos
manuscritos antigos do texto sagrado) dê a ler tal construção de frase, não há
crítico contemporâneo que não reconheça ser esta uma forma não-autêntica do
texto evangélico (explica-se pela variante encontrada em vários códices gregos:
«,. .José, ao qual estava esposada Maria, que gerou Jesus». A omissão do
segundo pronome relativo nesta frase deu origem à variante singular da versão
síria). Pode-se afirmar que S. Mateus intencionalmente se afastou do esquema
estilístico para dizer: «...Matã gerou Jacó, Jacó gerou José, o esposo de
Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo» (Mt 1,18); o Evangelista
quis, pois, conscientemente excluir José da paternidade física em relação a
Jesus.
A seguir, o mesmo autor, como que completando o seu
pensamento, acentua que Maria foi encontrada grávida por obra do Espírito Santo
antes que coabitasse com José; isto surpreendeu e perturbou o esposo, o qual,
porém, foi logo tranquilizado por um mensageiro do céu: «Não receies levar
contigo Maria, tua esposa, pois ela concebeu do Espírito Santo» (1,20).
c) Ao lado destes dois testemunhos de que Maria foi
fecundada de modo sobrenatural, há outro do qual se depreende que deu à luz sem
perder a sua integridade virginal. S. Lucas, com efeito, atesta que o parto de
Maria foi isento dos incômodos da geração natural, pois foi a própria mãe de
Jesus quem, imediatamente após haver dado à luz, prestou a seu filhinho os
primeiros cuidados de que necessitava: «Gerou seu filho primogênito, envolveu-O
em panos e reclinou-O numa manjedoura» (2,7). — É nestes termos sóbrios que o
Evangelista refere a virgindade de Maria no parto. Cf. «Pergunte e
Responderemos» 6/1958,
qu. 7.
d) A Escritura e a Tradição ensinam outrossim que Maria se
conservou virgem por todo o resto da vida. Veja-se a este respeito o que está
dito sobre os «irmãos de Jesus» em «Pergunte e Responderemos» 3/1957, qu. 13.
Hoje em dia a crítica reconhece que os Evangelhos de Mt, Mc
e Lc foram redigidos poucos decênios após a Ascensão (por volta de 50/63) na
base de fontes, orais e escritas, anteriores. Donde se deduz que a crença no
nascimento milagroso de Cristo foi desde a primeira geração de cristãos
professada na Igreja; é, pois, antiquíssima (vão seria dizer que as secções
concernentes à virgindade de Maria foram tardiamente interpoladas no texto dos
Evangelhos, pois em absoluto não há indicio disto na tradição dos manuscritos).
Sendo assim, pergunta-se: a fé no nascimento milagroso de
Jesus corresponderá à autêntica realidade histórica ou será mera expressão da
fantasia dos primeiros cristãos, inspirada por antigos mitos pagãos?
2. As tentativas de explicação por
influências não cristãs
A partir do século passado, autores liberais mais e mais
têm chamado a atenção para o fato de que «o mito da Virgem Mãe» não é raro nas
crenças religiosas e na mística da antiguidade. Assim dizia-se que Perseu, o
herói grego, nasceu da virgem Danaé, depois que Júpiter, sob a forma de uma
chuva de ouro, a quis fecundar. Referia-se que os filósofos Pitágoras, Platão,
os Imperadores Alexandre Magno e Augusto eram filhos dos deuses, concebidos e
gerados por via milagrosa. Na base destas observações, perguntam os críticos se
a crença no nascimento virginal de Cristo não vem a ser senão a forma judaico-cristã
do antigo mito.»
Em resposta, observar-se-á quanto segue:
2.1) É relativamente fácil estabelecer paralelos entre
certas realidades históricas, de um lado, e mitos ou lendas, de outro lado.
Basta às vezes considerar isoladamente um traço da realidade que se estuda,
para se verificar que, separado do conjunto, lembra um mito ou uma lenda
inteira. Assim já houve quem asseverasse que a vida do Imperador Napoleão (por
muito próxima que esteja dos nossos tempos) não é senão a expressão de um mito
solar!...
No terreno da crítica científica, para se poder afirmar
dependência doutrinária, não basta verificar semelhança de traços entre os
episódios que se comparam, mas é preciso averiguar se há ou não afinidade de
mentalidade ou ideologia entre duas narrativas (um mito e um suposto mito). Ora
entre a mentalidade pressuposta pela fé no nascimento virginal de Cristo e a
mentalidade que inspira os mitos ou as lendas aparentemente congêneres da Ásia
ou do Império greco-romano, verifica-se que não somente não há convergência,
mas existe mesmo incompatibilidade radical.
2.2) Com efeito; duas das características que mais chamam a
atenção nas narrativas evangélicas são: a) a parcimônia de pormenores e b) o
elevado nível moral em que versam.
A conceição e o nascimento virginal são expressos em termos
breves, cheios de reverência, quase com timidez por parte dos Evangelistas; não
se mencionam milagres que acompanhem
o nascimento do Menino-Deus, ao passo que na quarta Écloga de Virgílio, por
exemplo, as circunstâncias que cercam o nascimento do Menino maravilhoso são
idealizadas em alto grau: a terra treme, a vegetação se torna exuberante, as
flores cercam o berço do recém-nascido; perecem animais e vegetais venenosos;
algo de semelhante se observa na história do nascimento de Alexandre Magno. Ao
contrário, a narrativa do Evangelho é toda subordinada a reais circunstâncias
históricas: José e Maria sobem a Belém para cumprir um decreto de recenseamento
de César Augusto; a viagem deve ter sido penosa; mas não aparece anjo para
facilitá-la nem para garantir um lugar côngruo para o casal em um albergue; é
paradoxalmente numa gruta ou manjedoura que se dá o nascimento estupendo (como
o Evangelista se importa pouco com a acentuação do prodígio!); os anjos que
entram em cena, dirigem-se aos pastores, mas silenciam precisamente o parto
virginal, e indicam como sinais distintivos do Salvador a manjedoura e os
respectivos panos; após o nascimento, a criança e sua mãe se sujeitam às leis
judaicas da circuncisão e da purificação. O divino, o transcendente assim
aparecem muito «encarnados» na realidade histórica, na humildade humana, a
ponto de se julgar difícil que os traços milagrosos de tais narrativas hajam
sido forjados à semelhança dos mitos antigos.
Observa-se outrossim, na descrição evangélica, preocupação
com pureza de costumes; não há aí vestígio do amor erótico ou apaixonado que
nos mitos move a Divindade em demanda da virgem (em geral, pode-se dizer que o
erotismo e a concupiscência costumam inspirar as aventuras de que nos fala a
literatura mitológica pagã). Diz a lenda grega, por exemplo, que Alexandre
Magno se gloriava de haver nascido de sua mãe Olímpia fecundada por Júpiter; ao
que Olímpia, tida consequentemente como prevaricadora, respondia: «Alexandre
não quer deixar de me caluniar junto a Hera (a esposa de Júpiter na
mitologia)!», Alexandre, filho de Júpiter, haveria sido filho da paixão
desregrada do grande Deus... De outro lado, é óbvio que não teria cabimento
falar de amor sexual entre o Altíssimo e a Virgem Maria no Evangelho; esta
responde precisamente ao mensageiro do alto : «Eis a serva do Senhor; faça-se
em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38).
2.3) Ademais será preciso levar em conta que tanto os
judeus como os cristãos faziam questão de guardar puras as suas crenças,
preservando-as de qualquer contaminação paganizante. É demasiado conhecida a
mentalidade fechada dos judeus da Palestina para que nela aqui insistamos.
Quanto aos cristãos, verifica-se que durante três séculos foram perseguidos a
título de «inimigos do gênero humano», «réus de lesa-pátria e lesa-majestade»,
justamente porque não queriam tomar parte nas instituições, domésticas ou
públicas, que tivessem o mínimo sabor de paganismo; incompatibilizavam-se com
os próximos familiares e com as autoridades do governo justamente para afirmar
absoluto repúdio da mentalidade politeísta (Tertuliano narra, por exemplo, em
211 o caso do soldado cristão que, tendo vencido uma competição, rejeitou
trazer a respectiva coroa de louros na cabeça, porque era tida como símbolo religioso pagão; cf. «De corona
militis»). Sendo assim, não se entenderia que os discípulos de Cristo, já na
sua primeira geração, tenham aceito dos pagãos um mito: o mito da «Virgem-Mãe».
Donde se conclui que, se professaram a crença no nascimento virginal de Jesus,
esta não pode ter sido importada como elemento heterogêneo, mas deve ter
pertencido, desde o início do Cristianismo, ao patrimônio da fé revelada.
3.
A harmonia das Escrituras Sagradas
O bom senso leva
finalmente a concluir que mais absurdo é recorrer a alguma das explicações racionalistas
para explicar o pretenso «mito» do nascimento virginal de Jesus do que aceitar
simplesmente a realidade sobrenatural que um tal nascimento implica.
Este resultado é robustecido por um novo dado de exegese
bíblica. A Escritura Sagrada, desde as suas páginas mais antigas, parece
preparar a idéia da natividade maravilhosa do Messias, fazendo que esta apareça
ao leitor moderno como genuíno fruto do depósito religioso judaico-cristão.
Sim; o texto bíblico refere como alguns dos homens de Deus foram dados ao mundo em
circunstâncias que excediam todas as expectativas humanas, prefigurando assim a
vinda virginal de Cristo.
1) Isaque, um dos remotos antepassados de Jesus, nasceu de
mãe estéril, à qual Deus quis dar prole maravilhosamente abençoada (cf. Gên
21,1-8).
2) Sansão, um dos «salvadores» (Juízes) antigos do povo de
Deus, nasceu de Manué e sua mulher infecunda, aos quais Deus, por meio de um
anjo, quis anunciar a próxima conceição (cf. Jz 13,1-25).
3) Samuel, outro dos grandes chefes de Israel, foi igualmente
fruto de ventre estéril. Ana, ao receber tal prole, reconheceu num cântico (que
é o arquétipo do de Maria, em Lc
1,46-55) a intervenção soberana de Deus, prenúncio da restauração
messiânica (cf. 1 Sam 1,1-2,10).
4) No fim da história antiga, nasceu João Batista,
preconizado pelo arcanjo Gabriel a seu pai Zacarias, que a princípio não quis
crer na possibilidade do portento (cf. Lc 1,5-25).
5) É a todos esses casos que se sobrepõe a natividade do
Messias; anunciado a Maria pelo mesmo arcanjo, foi virginalmente concebido e
gerado (cf. Lc 1,26-38; 2,1-7). Tão estupendo nascimento vinha bem credenciado
pelos episódios semelhantes que, segundo harmoniosa disposição da Providência,
o haviam precedido.
São,
por conseguinte, esses quadros paralelos do Antigo Testamento, sujeitos a um
plano de Deus sábio e retilíneo, que devem ser evocados para ilustrar o sentido
do parto virginal de Maria. Poder-se-á contudo reconhecer que a Providência
Divina, permitindo a formulação de certos mitos entre os pagãos, tenha, intencionado
suscitar no mundo politeísta o anelo de um Personagem extraordinário,
assinalado como tal desde o seu nascimento; por tais fábulas exprimia-se
infantilmente um prenúncio do Cristo Jesus, prenúncio que preparava os povos a
receber finalmente a mensagem do Evangelho (haja vista principalmente a quarta
Écloga de Virgílio, redigida por cerca de 41/40 a.C.).
Dom Estêvão
Bettencourt (OSB)
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