24 julho 2014

O VALOR E A INVIOLABILIDADE DA VIDA HUMANA - CARTA ENCÍCLICA EVANGELIUM VITAE DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II


INTRODUÇÃO

1. O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus. Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há-de ser fiel e corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os tempos e culturas.
Na aurora da salvação, é proclamado como feliz notícia o nascimento de um menino: « Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor » (Lc 2, 10-11). O motivo imediato que faz irradiar esta « grande alegria » é, sem dúvida, o nascimento do Salvador; mas, no Natal, manifesta-se também o sentido pleno de todo o nascimento humano, pelo que a alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da alegria por cada criança que nasce (cf. Jo 16, 21).
Ao apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: « Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10). Ele fala daquela vida « nova » e « eterna » que consiste na comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado no Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal « vida » que todos os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno significado.

O valor incomparável da pessoa humana
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus.
A sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal. Com efeito, a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte integrante do processo global e unitário da existência humana: um processo que, para além de toda a expectativa e merecimento, fica iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3, 1-2). Ao mesmo tempo, porém, o próprio chamamento sobrenatural sublinha a relatividade da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não é realidade « última », mas « penúltima »; trata-se, em todo o caso, de uma realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com sentido de responsabilidade e levarmos à perfeição no amor pelo dom de nós mesmos a Deus e aos irmãos.
A Igreja sabe que este Evangelho da vida, recebido do seu Senhor, 1 encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada pessoa, crente e até não crente, porque se ele supera infinitamente as suas aspirações, também lhes corresponde de maneira admirável. Mesmo por entre dificuldades e incertezas, todo o homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2, 14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente respeitado este seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal direito é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política.
De modo particular, devem defender e promover este direito os crentes em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II: « Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ». 2 De facto, neste acontecimento da salvação, revela-se à humanidade não só o amor infinito de Deus que « amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único » (Jo 3, 16), mas também o valor incomparável de cada pessoa humana.
A Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre com assombro incessante 3 este valor, e sente-se chamada a anunciar aos homens de todos os tempos este « evangelho », fonte de esperança invencível e de alegria verdadeira para cada época da história. O Evangelho do amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho da vida são um único e indivisível Evangelho.
É por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e fundamental caminho da Igreja. 4
As novas ameaças à vida humana
3. Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez carne (cf. Jo 1, 14), cada homem está confiado à solicitude materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da Igreja, é impossível não a tocar no centro da sua fé na encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar sem a interpelar na sua missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda a criatura (cf. Mc 16, 15).
Hoje, este anúncio torna-se particularmente urgente pela impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes.
Já o Concílio Vaticano II, numa página de dramática actualidade, deplorou fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a vida humana. À distância de trinta anos e fazendo minhas as palavras da Assembleia Conciliar, uma vez mais e com idêntica força os deploro em nome da Igreja inteira, com a certeza de interpretar o sentimento autêntico de toda a consciência recta: « Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ». 5
4. Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico e tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser humano, enquanto se delínea e consolida uma nova situação cultural que dá aos crimes contra a vida um aspecto inédito e — se é possível — ainda mais iníquo, suscitando novas e graves preocupações: amplos sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas ainda a própria autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta liberdade e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde.
Ora, tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de considerar a vida e as relações entre os homens. O facto de as legislações de muitos países, afastando-se quiçá dos próprios princípios basilares das suas Constituições, terem consentido em não punir ou mesmo até reconhecer a plena legitimidade de tais acções contra a vida, é conjuntamente sintoma preocupante e causa não marginal de uma grave derrocada moral: opções, outrora consideradas unanimamente criminosas e rejeitadas pelo senso moral comum, tornam-se pouco a pouco socialmente respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se orienta para a defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus sectores vai-se prestando em escala cada vez maior a realizar tais actos contra a pessoa, e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a dignidade de quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal, os graves problemas demográficos, sociais ou familiares — que incidem sobre numerosos povos do mundo e exigem a atenção responsável e operante das comunidades nacionais e internacionais —, encontram-se também sujeitos a soluções falsas e ilusórias, em contraste com a verdade e o bem das pessoas e das nações.
O resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e preocupante o fenómeno da eliminação de tantas vidas humanas nascentes ou encaminhadas para o seu ocaso, não o é menos o facto de à própria consciência, ofuscada por tão vastos condicionalismos, lhe custar cada vez mais a perceber a distinção entre o bem e o mal, precisamente naquilo que toca o fundamental valor da vida humana.

Em comunhão com todos os Bispos do mundo
5. Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi dedicado o Consistório Extraordinário dos Cardeais, realizado em Roma de 4 a 7 de Abril de 1991. Depois de amplo e profundo debate do problema e dos desafios postos à família humana inteira e, de modo particular, à Comunidade cristã, os Cardeais, com voto unânime, pediram-me que reafirmasse, com a autoridade do Sucessor de Pedro, o valor da vida humana e a sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias actuais e dos atentados que hoje a ameaçam.
Acolhendo tal pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma carta pessoal a cada Irmão no Episcopado para que, em espírito de colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à elaboração de um específico documento. 6 Agradeço profundamente a todos os Bispos que responderam, fornecendo-me preciosas informações, sugestões e
propostas. Deram também assim testemunho da sua participação concorde e convicta na missão doutrinal e pastoral da Igreja acerca do Evangelho da vida.
Nessa mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da celebração do centenário da Encíclica Rerum novarum, chamava a atenção de todos para esta singular analogia: « Como há um século, oprimida nos seus direitos fundamentais era a classe operária, e a Igreja com grande coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito evangélico em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos seus direitos humanos ». 7
Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão de seres humanos débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças ainda não nascidas. Se, ao findar do século passado, não fora consentido à Igreja calar perante as injustiças então reinantes, menos ainda pode ela calar hoje, quando às injustiças sociais do passado — infelizmente ainda não superadas — se vêm somar, em tantas partes do mundo, injustiças e opressões ainda mais graves, mesmo se disfarçadas em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem mundial.
A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um:respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade!
Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a todas as pessoas de boa vontade, solícitas pelo bem de cada homem e mulher e pelo destino da sociedade inteira!
6. Em profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por sincera amizade para com todos, quero meditar de novo e anunciar o Evangelho da vida, clara luz que ilumina as consciências, esplendor de verdade que cura o olhar ofuscado, fonte inexaurível de constância e coragem para enfrentar os desafios sempre novos que encontramos no nosso caminho.
Tendo no pensamento a rica experiência vivida durante o Ano da Família, e quase completando idealmente a Carta que dirigi « a cada família concreta de cada região da terra », 8 olho com renovada confiança para todas as comunidades domésticas e faço votos por que renasça ou se reforce, em todos e aos diversos níveis, o compromisso de apoiarem a família, para que também hoje — mesmo no meio de numerosas dificuldades e graves ameaças — ela se conserve sempre, segundo o desígnio de Deus, como « santuário da vida ». 9
A todos os membros da Igreja, povo da vida e pela vida, dirijo o mais premente convite para que, juntos, possamos dar novos sinais de esperança a este nosso mundo, esforçando-nos por que cresçam a justiça e a solidariedade e se afirme uma nova cultura da vida humana, para a edificação de uma autêntica civilização da verdade e do amor.

CAPÍTULO I
A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA ATÉ MIM 
AS ACTUAIS AMEAÇAS À VIDA HUMANA

« Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o » (Gn 4, 8): na raiz da violência contra a vida
7. « Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência. (...) Com efeito, Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê- -lo à imagem da sua própria natureza. Por inveja do demónio é que a morte entrou no mundo e prová-la-ão os que pertencem ao demónio » (Sab 1, 13-14; 2, 23-24).
O Evangelho da vida, que ressoa, logo ao princípio, com a criação do homem à imagem de Deus para um destino de vida plena e perfeita (cf. Gn 2, 7; Sab 9, 2-3), vê-se contestado pela experiência dilacerante da morte que entra no mundo, lançando o espectro da falta de sentido sobre toda a existência do homem.
A morte entra por causa da inveja do diabo (cf. Gn 3, 1.4-5) e do pecado dos primeiros pais (cf. Gn 2, 17; 3, 17-19). E entra de modo violento, através do assassínio de Abel por obra do seu irmão: « Logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o » (Gn 4, 8).
Este primeiro assassínio é apresentado, com singular eloquência, numa página paradigmática do Livro do Génesis: página transcrita cada dia, sem cessar e com degradante repetição, no livro da história dos povos.
Queremos ler de novo, juntos, esta página bíblica, que, apesar do seu aspecto arcaico e extrema simplicidade, se apresenta riquíssima de ensinamentos.
« Abel foi pastor; e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as gorduras deles. O Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta, mas não olhou para Caim nem para a sua oferta.
Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou--se-lhe. O Senhor disse a Caim: "Porque estás zangado e o teu rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo".
Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: "Vamos ao campo". Porém, logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão Abel e matou-o.
O Senhor disse a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?" Caim respondeu: "Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?" O Senhor replicou: "Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás maldito sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, negar-te-á as suas riquezas. Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra".
Caim disse ao Senhor: "A minha culpa é grande demais para obter perdão! Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á".
O Senhor respondeu: "Não, se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais". E o Senhor marcou-o com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim afastou-se da presença do Senhor e foi residir na região de Nod, ao oriente do Éden » (Gn 4, 2-16).
8. Caim está « muito irritado » e tem o rosto « transtornado », porque « o Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta » (Gn 4, 4). O texto bíblico não revela o motivo pelo qual Deus preferiu o sacrifício de Abel ao de Caim; mas indica claramente que, mesmo preferindo a oferta de Abel, não interrompe o seu diálogo com Caim. Acautela-o, recordando-lhe a sua liberdade frente ao mal: o homem não está de forma alguma predestinado para o mal. Certamente, à semelhança de Adão, ele é tentado pela força maléfica do pecado que, como um animal feroz, se agacha à porta do seu coração, à espera de lançar-se sobre a presa. Mas Caim permanece livre diante do pecado. Pode e deve dominá-lo: « Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo » (Gn 4, 7).
Sobre a advertência feita pelo Senhor, porém, levam a melhor o ciúme e a ira, e Caim atira-se contra o próprio irmão e mata-o. Como lemos no Catecismo da Igreja Católica, « a Sagrada Escritura, na narrativa da morte de Abel por seu irmão Caim, revela, desde os primórdios da história humana, a presença no homem da cólera e da inveja, consequências do pecado original. O homem tornou-se inimigo do seu semelhante ». 10
O irmão mata o irmão. Como naquele primeiro fratricídio, também em cada homicídio é violado o parentesco « espiritual » que congrega os homens numa única grande família, 11 sendo todos participantes do mesmo bem fundamental: a igual dignidade pessoal. E, não raro, resulta violado também o parentesco « da carne e do sangue », quando, por exemplo, as ameaças à vida se verificam ao nível do relacionamento pais e filhos, como sucede com o aborto ou quando, no mais vasto contexto familiar ou de parentela, é encorajada ou provocada a eutanásia.
Na raiz de qualquer violência contra o próximo, há uma cedência à « lógica » do maligno, isto é, daquele que « foi assassino desde o princípio » (Jo 8, 44), como nos recorda o apóstolo João: « Porque esta é a mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não seja como Caim que era do maligno, e matou o seu irmão » (1 Jo 3, 11-12). Assim o assassinato do irmão, desde os alvores da história, é o triste testemunho de como o mal progride com rapidez impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso terreal segue-se a luta mortal do homem contra o homem.
Depois do crime, Deus intervém para vingar a vítima. Frente a Deus que o interroga sobre a sorte de Abel, Caim, em vez de se mostrar confundido e desculpar-se, esquiva-se à pergunta com arrogância: « Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9). « Não sei dele »: com a mentira, Caim procura encobrir o crime. Assim aconteceu frequentemente e continua a verificar-se quando se servem das mais diversas ideologias para justificar e mascarar os crimes mais atrozes contra a pessoa. « Sou, porventura, guarda do meu irmão? »: Caim não quer pensar no irmão, e recusa-se a assumir aquela responsabilidade que cada homem tem pelo outro. Saltam espontaneamente ao pensamento as tendências actuais para sonegar a responsabilidade do homem pelo seu semelhante, de que são sintomas, entre outros, a falta de solidariedade com os membros mais débeis da sociedade — como são os idosos, os doentes, os imigrantes, as crianças —, e a indiferença que tantas vezes se regista nas relações entre os povos, mesmo quando estão em jogo valores fundamentais como a sobrevivência, a liberdade e a paz.
9. Mas Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi derramado, o sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn 37, 26; Is 26, 21; Ez 24, 7-8). Deste texto, a Igreja retirou a denominação de « pecados que bradam ao Céu », incluindo em primeiro lugar o homicídio voluntário. 12 Para os hebreus, como para muitos povos da antiguidade, o sangue é a sede da vida, ou melhor « o sangue é a vida » (Dt 12, 23), e a vida, sobretudo a humana, pertence unicamente a Deus: por isso, quem atenta contra a vida do homem, de algum modo atenta contra o próprio Deus.
Caim é amaldiçoado por Deus como também pela terra, que lhe recusará os seus frutos (cf. Gn 4, 11-12). E é punido: habitará em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera profundamente o ambiente da vida do homem. A terra, que era o « jardim do Éden » (Gn 2, 15), lugar de abundância, de serenas relações interpessoais e de amizade com Deus, torna-se o « país de Nod » (Gn 4, 16), lugar de « miséria », de solidão e de afastamento de Deus. Caim será « fugitivo e vagabundo pela terra » (Gn 4, 14): dúvida e instabilidade sempre o acompanharão.
Contudo Deus, misericordioso mesmo quando castiga, « marcou 1 com um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar » (Gn 4, 15): põe-lhe um sinal, cujo objectivo não é condená-lo à abominação dos outros homens, mas protegê-lo e defendê-lo daqueles que o quiserem matar, ainda que seja para vingar a morte de Abel. Nem sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante. E é precisamente aqui que se manifesta o mistério paradoxal da justiça misericordiosa de Deus, como escreve Santo Ambrósio: « Visto que tinha sido cometido um fratricídio — ou seja, o maior dos crimes —, no momento em que se introduziu o pecado, teve imediatamente de ser ampliada a lei da misericórdia divina; para que, caso o castigo atingisse imediatamente o culpado, não sucedesse que os homens, ao punirem, não usassem de qualquer tolerância nem mansidão, mas entregassem imediatamente ao castigo os culpados. (...) Deus repeliu Caim da sua presença e, renegado pelos seus pais, como que o desterrou para o exílio de uma habitação separada, pelo facto de ter passado da mansidão humana à crueldade selvagem. Todavia Deus não quer punir o homicida com um homicídio, porque prefere o arrependimento do pecador à sua morte ». 13

« Que fizeste? » (Gn 4, 10): o eclipse do valor da vida
10. O Senhor disse a Caim: « Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim » (Gn 4, 10). A voz do sangue derramado pelos homens não cessa de clamar, de geração em geração, assumindo tons e acentos sempre novos e diversos.
A pergunta do Senhor « que fizeste? », à qual Caim não se pode esquivar, é dirigida também ao homem contemporâneo, para que tome consciência da amplitude e gravidade dos atentados à vida que continuam a registar-se na história da humanidade, para que vá à procura das múltiplas causas que os geram e alimentam, e, enfim, para que reflita com extrema seriedade sobre as consequências que derivam desses mesmos atentados para a existência das pessoas e dos povos.
Algumas ameaças provêm da própria natureza, mas são agravadas pelo descuido culpável e pela negligência dos homens que, não raro, lhes poderiam dar remédio; outras, ao contrário, são fruto de situações de violência, de ódio, de interesses contrapostos, que induzem homens a agredirem outros homens com homicídios, guerras, massacres, genocídios.
Como não pensar na violência causada à vida de milhões de seres humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais? Ou na violência inerente às guerras, e ainda antes delas, ao escandaloso comércio de armas, que favorece o torvelinho de tantos conflitos armados que ensanguentam o mundo? Ou então na sementeira de morte que se provoca com a imprudente alteração dos equilíbrios ecológicos, com a criminosa difusão da droga, ou com a promoção do uso da sexualidade segundo modelos que, além de serem moralmente inaceitáveis, acarretam ainda graves riscos para a vida? É impossível registar de modo completo a vasta gama das ameaças à vida humana, tantas são as formas, abertas ou camufladas, de que se revestem no nosso tempo!
11. Mas queremos concentrar a nossa atenção, de modo particular, sobre outro género de atentados, relativos à vida nascente e terminal, que apresentam novas características em relação ao passado e levantam problemas de singular gravidade: é que, na consciência colectiva, aqueles tendem a perder o carácter de « crimes » para assumir, paradoxalmente, o carácter de « direitos », a ponto de se pretender um verdadeiro e próprio reconhecimento legal da parte do Estado e a consequente execução gratuita por intermédio dos profissionais da saúde. Tais atentados ferem a vida humana em situações de máxima fragilidade, quando se acha privada de qualquer capacidade de defesa. Mais grave ainda é o facto de serem consumados, em grande parte, mesmo no seio e por obra da família que está, pelo contrário, chamada constitutivamente a ser « santuário da vida ».
Como se pôde criar semelhante situação? Há que tomar em consideração diversos factores. Como pano de fundo, existe uma crise profunda da cultura, que gera cepticismo sobre os próprios fundamentos do conhecimento e da ética e torna cada vez mais difícil compreender claramente o sentido do homem, dos seus direitos e dos seus deveres. A isto, vêm juntar-se as mais diversas dificuldades existenciais e interpessoais, agravadas pela realidade de uma sociedade complexa, onde frequentemente as pessoas, os casais, as famílias são deixadas sozinhas a braços com os seus problemas. Não faltam situações de particular pobreza, angústia e exasperação, onde a luta pela sobrevivência, a dor nos limites do suportável, as violências sofridas, especialmente aquelas que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as opções de defesa e promoção da vida.
Tudo isto explica — pelo menos em parte — como possa o valor da vida sofrer hoje uma espécie de « eclipse », apesar da consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e intocável; e comprova-o o próprio fenómeno de se procurar encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou terminal com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do facto de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana concreta.
12. Com efeito, se muitos e graves aspectos da problemática social actual podem, de certo modo, explicar o clima de difusa incerteza moral e, por vezes, atenuar a responsabilidade subjectiva no indivíduo, não é menos verdade que estamos perante uma realidade mais vasta que se pode considerar como verdadeira e própria estrutura de pecado, caracterizada pela imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos casos se configura como verdadeira « cultura de morte ». É activamente promovida por fortes correntes culturais, económicas e políticas, portadoras de uma concepção eficientista da sociedade.
Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo sentido, falar de uma guerra dos poderosos contra os débeis: a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e, consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. Todo aquele que, pela sua enfermidade, a sua deficiência ou, mais simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em causa o bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais avantajados, tende a ser visto como um inimigo do qual defender-se ou um inimigo a eliminar. Desencadeia-se assim uma espécie de « conjura contra a vida ». Esta não se limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações pessoais, familiares ou de grupo, mas alarga-se muito para além até atingir e subverter, a nível mundial, as relações entre os povos e os Estados.
13. Para facilitar a difusão do aborto, foram investidas — e continuam a sê-lo — somas enormes, destinadas à criação de fármacos que tornem possível a morte do feto no ventre materno, sem necessidade de recorrer à ajuda do médico. A própria investigação científica, neste âmbito, parece quase exclusivamente preocupada em obter produtos cada vez mais simples e eficazes contra a vida e, ao mesmo tempo, capazes de subtrair o aborto a qualquer forma de controlo e responsabilidade social.
Afirma-se frequentemente que a contracepção, tornada segura e acessível a todos, é o remédio mais eficaz contra o aborto. E depois acusa-se a Igreja Católica de, na realidade, favorecer o aborto, porque continua obstinadamente a ensinar a ilicitude moral da contracepção.
Bem vista, porém, a objecção é falaciosa. De facto, pode acontecer que muitos recorram aos contraceptivos com a intenção também de evitar depois a tentação do aborto. Mas os pseudo-valores inerentes à « mentalidade contraceptiva » — muito diversa do exercício responsável da paternidade e maternidade, actuada no respeito pela verdade plena do acto conjugal — são tais que tornam ainda mais forte essa tentação, na eventualidade de ser concebida uma vida não desejada. De facto, a cultura pro-aborto aparece sobretudo desenvolvida nos mesmos ambientes que recusam o ensinamento da Igreja sobre a contracepção. Certo é que a contracepção e o aborto são males especificamente diversos do ponto de vista moral: uma contradiz a verdade integral do acto sexual enquanto expressão própria do amor conjugal, o outro destrói a vida de um ser humano; a primeira opõe-se à virtude da castidade matrimonial, o segundo opõe-se à virtude da justiça e viola directamente o preceito divino « não matarás ».
Mas, apesar de terem natureza e peso moral diversos, eles surgem, com muita frequência, intimamente relacionados como frutos da mesma planta. É verdade que não faltam casos onde, à contracepção e ao próprio aborto se vem juntar a pressão de diversas dificuldades existenciais que, no entanto, não podem nunca exonerar do esforço de observar plenamente a lei de Deus. Mas, em muitíssimos outros casos, tais práticas afundam as suas raízes numa mentalidade hedonista e desresponsabilizadora da sexualidade, e supõem um conceito egoísta da liberdade que vê na procriação um obstáculo ao desenvolvimento da própria personalidade. A vida que poderia nascer do encontro sexual torna-se assim o inimigo que se há-de evitar absolutamente, e o aborto a única solução possível diante de uma contracepção falhada.
Infelizmente, emerge cada vez mais a estreita conexão que existe, a nível de mentalidade, entre as práticas da contracepção e do aborto, como o demonstra, de modo alarmante, a produção de fármacos, dispositivos intra-uterinos e preservativos, os quais, distribuídos com a mesma facilidade dos contraceptivos, actuam na prática como abortivos nos primeiros dias de desenvolvimento da vida do novo ser humano.
14. Também as várias técnicas de reprodução artificial, que pareceriam estar ao serviço da vida e que, não raro, são praticadas com essa intenção, na realidade abrem a porta a novos atentados contra a vida. Para além do facto de serem moralmente inaceitáveis, porquanto separam a procriação do contexto integralmente humano do acto conjugal, 14 essas técnicas registam altas percentagens de insucesso: este diz respeito não tanto à fecundação como sobretudo ao desenvolvimento sucessivo do embrião, sujeito ao risco de morte em tempos geralmente muito breves. Além disso, são produzidos às vezes embriões em número superior ao necessário para a implantação no útero da mulher e esses, chamados « embriões supranumerários », são depois suprimidos ou utilizados para pesquisas que, a pretexto de progresso científico ou médico, na realidade reduzem a vida humana a simples « material biológico », de que se pode livremente dispor.
Os diagnósticos pré-natais, que não apresentam dificuldades morais quando feitos para individuar a eventualidade de curas necessárias à criança ainda no seio materno, tornam-se, com muita frequência, ocasião para propor e solicitar o aborto. É o aborto eugénico, cuja legitimação, na opinião pública, nasce de uma mentalidade — julgada, erradamente, coerente com as exigências « terapêuticas » — que acolhe a vida apenas sob certas condições, e que recusa a limitação, a deficiência, a enfermidade.
Seguindo a mesma lógica, chegou-se a negar os cuidados ordinários mais elementares, mesmo até a alimentação, a crianças nascidas com graves deficiências ou enfermidades. E o cenário contemporâneo apresenta-se ainda mais desconcertante com as propostas — avançadas aqui e além — para, na mesma linha do direito ao aborto, se legitimar até o infanticídio, retornando assim a um estado de barbárie que se esperava superado para sempre.
15. Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes incuráveis e os doentes terminais, num contexto social e cultural que, tornando mais difícil enfrentar e suportar o sofrimento, aviva a tentação de resolver o problema do sofrimento eliminando-o pela raiz, com a antecipação da morte para o momento considerado mais oportuno.
Para tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos de natureza diversa mas infelizmente convergentes para essa terrível saída. Pode ser decisivo, na pessoa doente, o sentimento de angústia, exasperação, ou até desespero, provocado por uma experiência de dor intensa e prolongada. Vêem-se, assim, duramente postos à prova os equilíbrios, por vezes já abalados, da vida pessoal e familiar, de maneira que, por um lado, o doente, não obstante os auxílios cada vez mais eficazes da assistência médica e social, corre o risco de se sentir esmagado pela própria fragilidade; por outro lado, naqueles que lhe estão afectivamente ligados, pode gerar-se um sentimento de compreensível, ainda que mal-entendida, compaixão. Tudo isto fica agravado por uma atmosfera cultural que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento, antes considera-o como o mal por excelência, que se há-de eliminar a todo o custo; isto verifica- -se especialmente quando não se possui uma visão religiosa que ajude a decifrar positivamente o mistério da dor.
Mas, no conjunto do horizonte cultural, não deixa de incidir também uma espécie de atitude prometéica do homem que, desse modo, se ilude de poder apropriar-se da vida e da morte para decidir delas, quando na realidade acaba derrotado e esmagado por uma morte irremediavelmente fechada a qualquer perspectiva de sentido e a qualquer esperança. Uma trágica expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia, ora mascarada e subreptícia, ora actuada abertamente e até legalizada. Para além do motivo de presunta compaixão diante da dor do paciente, às vezes pretende-se justificar a eutanásia também com uma razão utilitarista, isto é, para evitar despesas improdutivas demasiado gravosas para a sociedade. Propõe-se, assim, a supressão dos recém-nascidos defeituosos, dos deficientes profundos, dos inválidos, dos idosos, sobretudo quando não auto-suficientes, e dos doentes terminais. Nem nos é lícito calar frente a outras formas mais astuciosas, mas não menos graves e reais, de eutanásia, como são as que se poderiam verificar, por exemplo, quando, para aumentar a disponibilidade de material para transplantes, se procedesse à extracção dos órgãos sem respeitar os critérios objectivos e adequados de certificação da morte do dador.
16. Outro motivo actual, que frequentemente é acompanhado por ameaças e atentados à vida, é o fenómeno demográfico. Este reveste aspectos diversos, nas várias partes do mundo: nos países ricos e desenvolvidos, regista-se uma preocupante diminuição ou queda da natalidade; os países pobres, ao contrário, apresentam em geral uma elevada taxa de aumento da população, dificilmente suportável num contexto de menor progresso económico e social, ou até de grave subdesenvolvimento. Face ao sobrepovoamento dos países pobres, verifica-se, a nível internacional, a falta de intervenções globais — sérias políticas familiares e sociais, programas de crescimento cultural e de justa produção e distribuição dos recursos — enquanto se continuam a actuar políticas anti-natalistas.
Devendo, sem dúvida, incluir-se a contracepção, a esterilização e o aborto entre as causas que contribuem para determinar as situações de forte queda da natalidade, pode ser fácil a tentação de recorrer aos mesmos métodos e atentados contra a vida, nas situações de « explosão demográfica ».
O antigo Faraó, sentindo como um íncubo a presença e a multiplicação dos filhos de Israel, sujeitou-os a todo o tipo de opressão e ordenou que fossem mortas todas as crianças do sexo masculino (cf. Ex 1, 7-22). Do mesmo modo se comportam hoje bastantes poderosos da terra.
Também estes vêem como um íncubo o crescimento demográfico em acto, e temem que os povos mais prolíferos e mais pobres representem uma ameaça para o bem-estar e a tranquilidade dos seus países. Consequentemente, em vez de procurarem enfrentar e resolver estes graves problemas dentro do respeito da dignidade das pessoas e das famílias e do inviolável direito de cada homem à vida, preferem promover e impor, por qualquer meio, um maciço planeamento da natalidade. As próprias ajudas económicas, que se dizem dispostos a dar, ficam injustamente condicionadas à aceitação desta política anti-natalista.
17. A humanidade de hoje oferece-nos um espectáculo verdadeiramente alarmante, se pensarmos não só aos diversos âmbitos em que se realizam os atentados à vida, mas também à singular dimensão numérica dos mesmos, bem como ao múltiplo e poderoso apoio que lhes é dado pelo amplo consenso social, pelo frequente reconhecimento legal, pelo envolvimento de uma parte dos profissionais da saúde.
Como senti dever bradar em Denver, por ocasião do VIII Dia Mundial da Juventude, « com o tempo, as ameaças contra a vida não diminuíram. Elas, ao contrário, assumem dimensões enormes. Não se trata apenas de ameaças vindas do exterior, de forças da natureza ou dos « Cains » que assassinam os « Abéis »; não, trata-se de ameaças programadas de maneira científica e sistemática. O século XX ficará considerado uma época de ataques maciços contra a vida, uma série infindável de guerras e um massacre permanente de vidas humanas inocentes. Os falsos profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso possível ». 15 Para além das intenções, que podem ser várias e quiçá assumir formas persuasivas em nome até da solidariedade, a verdade é que estamos perante uma objectiva « conjura contra a vida » que vê também implicadas Instituições Internacionais, empenhadas a encorajar e programar verdadeiras e próprias campanhas para difundir a contracepção, a esterilização e o aborto. Não se pode negar, enfim, que os mass-media são frequentemente cúmplices dessa conjura, ao abonarem junto da opinião pública aquela cultura que apresenta o recurso à contracepção, à esterilização, ao aborto e à própria eutanásia como sinal do progresso e conquista da liberdade, enquanto descrevem como inimigas da liberdade e do progresso as posições incondicionalmente a favor da vida.

« Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9): uma noção perversa de liberdade
18. O panorama descrito requer ser conhecido não somente nos fenómenos de morte que o caracterizam, mas também nas múltiplas causas que o determinam. A pergunta do Senhor « que fizeste? » (Gn 4, 10) quase parece um convite dirigido a Caim para que, ultrapassando a materialidade do gesto homicida, veja toda a gravidade nas motivações que estão na sua origem e nas consequências que dele derivam.
As opções contra a vida nascem, às vezes, de situações difíceis ou mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de carência total de perspectivas económicas, de depressão e de angústia pelo futuro. Estas circunstâncias podem atenuar, mesmo até notavelmente, a responsabilidade subjectiva e, consequentemente, a culpabilidade daqueles que realizam tais opções em si mesmas criminosas. Hoje, todavia, o problema estende-se muito para além do reconhecimento, sempre necessário, destas situações pessoais. Põe-se também no plano cultural, social e político, onde apresenta o seu aspecto mais subversivo e perturbador na tendência, cada vez mais largamente compartilhada, de interpretar os mencionados crimes contra a vida como legítimas expressões da liberdade individual, que hão-de ser reconhecidas e protegidas como verdadeiros e próprios direitos.
Chega assim a uma viragem de trágicas consequências, um longo processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o conceito de « direitos humanos » — como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores a qualquer Constituição e legislação dos Estados —, incorre hoje numa estranha contradição: precisamente numa época em que se proclamam solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o próprio direito à vida é praticamente negado e espezinhado, particularmente nos momentos mais emblemáticos da existência, como são o nascer e o morrer.
Por um lado, as várias declarações dos direitos do homem e as múltiplas iniciativas que nelas se inspiram, indicam a consolidação a nível mundial de uma sensibilidade moral mais diligente em reconhecer o valor e a dignidade de cada ser humano enquanto tal, sem qualquer distinção de raça, nacionalidade, religião, opinião política, estrato social.
Por outro lado, a estas nobres proclamações contrapõem-se, infelizmente nos factos, a sua trágica negação. Esta é ainda mais desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente porque se realiza numa sociedade que faz da afirmação e tutela dos direitos humanos o seu objectivo principal e, conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr de acordo essas repetidas afirmações de princípio com a contínua multiplicação e a difusa legitimação dos atentados à vida humana? Como conciliar estas declarações com a recusa do mais débil, do mais carenciado, do idoso, daquele que acaba de ser concebido? Estes atentados encaminham-se exactamente na direcção contrária à do respeito pela vida e representam uma ameaça frontal a toda a cultura dos direitos do homem. É uma ameaça capaz, em última análise, de pôr em risco o próprio significado da convivência democrática: de sociedade de « con-viventes », as nossas cidades correm o risco de passar a sociedade de excluídos, marginalizados, irradiados e suprimidos. Se depois o olhar se alarga ao horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos direitos das pessoas e dos povos, verificada em altas reuniões internacionais, se reduz a um estéril exercício retórico, se lá não é desmascarado o egoísmo dos países ricos que fecham aos países pobres o acesso ao desenvolvimento ou o condicionam a proibições absurdas de procriação, contrapondo o progresso ao homem? Porventura não é de pôr em discussão os próprios modelos económicos, adoptados pelos Estados frequentemente também por pressões e condicionamentos de carácter internacional, que geram e alimentam situações de injustiça e violência, nas quais a vida humana de populações inteiras fica degradada e espezinhada?
19. Onde estão as raízes de uma contradição tão paradoxal?
Podemo-las individuar em avaliações globais de ordem cultural e moral, a começar daquela mentalidade que, exasperando e até deformando o conceito de subjectividade, só reconhece como titular de direitos quem se apresente com plena ou, pelo menos, incipiente autonomia e esteja fora da condição de total dependência dos outros. Mas, como conciliar tal impostação com a exaltação do homem enquanto ser « não-disponível »? A teoria dos direitos humanos funda-se precisamente na consideração do facto de o homem, ao contrário dos animais e das coisas, não poder estar sujeito ao domínio de ninguém. Deve-se acenar ainda àquela lógica que tende a identificar a dignidade pessoal com a capacidade de comunicação verbal e explícita e, em todo o caso, experimentável. Claro que, com tais pressupostos, não há espaço no mundo para quem, como o nascituro ou o doente terminal, é um sujeito estruturalmente débil, parece totalmente à mercê de outras pessoas e radicalmente dependente delas, e sabe comunicar apenas mediante a linguagem muda de uma profunda simbiose de afectos. Assim a força torna-se o critério de decisão e de acção, nas relações interpessoais e na convivência social. Mas isto é precisamente o contrário daquilo que, historicamente, quis afirmar o Estado de direito, como comunidade onde as « razões da força » são substituídas pela « força da razão ».
A outro nível, as raízes da contradição que se verifica entre a solene afirmação dos direitos do homem e a sua trágica negação na prática, residem numa concepção da liberdade que exalta o indivíduo de modo absoluto e não o predispõe para a solidariedade, o pleno acolhimento e serviço do outro. Se é certo que, por vezes, a supressão da vida nascente ou terminal aparece também matizada com um sentido equivocado de altruísmo e de compaixão humana, não se pode negar que tal cultura de morte, no seu todo, manifesta uma concepção da liberdade totalmente individualista que acaba por ser a liberdade dos « mais fortes » contra os débeis, destinados a sucumbir.
Precisamente neste sentido, se pode interpretar a resposta de Caim à pergunta do Senhor « onde está Abel, teu irmão? »: « Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9). Sim, todo o homem é « guarda do seu irmão », porque Deus confia o homem ao homem. E é tendo em vista também tal entrega que Deus dá a cada homem a liberdade, que possui uma dimensão relacional essencial. Trata-se de um grande dom do Criador, quando colocada como deve ser ao serviço da pessoa e da sua realização mediante o dom de si e o acolhimento do outro; quando, pelo contrário, a liberdade é absolutizada em chave individualista, fica esvaziada do seu conteúdo originário e contestada na sua própria vocação e dignidade.
Mas há um aspecto ainda mais profundo a sublinhar: a liberdade renega-se a si mesma, autodestrói-se e predispõe-se à eliminação do outro, quando deixa de reconhecer e respeitar a sua ligação constitutiva com a verdade. Todas as vezes que a razão humana, querendo emancipar-se de toda e qualquer tradição e autoridade, se fecha até às evidências primárias de uma verdade objectiva e comum, fundamento da vida pessoal e social, a pessoa acaba por assumir como única e indiscutível referência para as próprias decisões, não já a verdade sobre o bem e o mal, mas apenas a sua subjectiva e volúvel opinião ou, simplesmente, o seu interesse egoísta e o seu capricho.

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