O pecado e suas
consequências
Ora, Adão e Eva sucumbiram à tentação. Talvez lhes tenha
sobrevindo a ideia, não explícita, de que não deveria existir a mais leve dor
na ordem da criação, e perante a prova que Deus lhes impunha tomaram uma
atitude de revolta interior, induzidos a roubar a própria honra de Deus.
Os nossos primeiros pais pecaram. E a queda trouxe o
castigo, em sentença proferida pelo próprio Deus: “Multiplicarei teus
sofrimentos [...] maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com
trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida” (Gn 3, 16-17).
O pecado produziu uma revolução nessa harmonia interior e
exterior na qual antes viviam: o homem encontrou-se de repente cercado de mil
perigos da natureza, os animais se lhe tornaram hostis, a terra produziu
espinhos e abrolhos, e ele viu-se obrigado a comer o pão com o suor de seu
rosto (cf. Gn 3, 18-19). Sua alma tornou-se vítima das más inclinações, sujeita
ao erro e à rebeldia dos instintos contra os ditames da razão. E a História
passou a registrar a peregrinação árdua e dolorosa de uma humanidade em guerra
constante contra si mesma, conforme diz o Livro de Jó: “A vida do homem sobre a
terra é uma luta” (Jó 7, 1).
A culpa de nossos primeiros pais atraiu sobre eles, e sobre
sua posteridade, a maldição e a perda da amizade de Deus, reparável somente por
meio do Batismo e da graça. Mas atingiu também a ordem do universo, da qual
Adão fora feito rei: “Deste-lhe poder sobre as obras de Vossas mãos, Vós lhe
submetestes todo o universo” (Sl 8, 7).
Afirma São Paulo: “A criação foi sujeita à vaidade (não
voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou), todavia com a
esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para
participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a
criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia” (Rm 8, 20-22).
Um Deus abraçado à
Cruz
Apesar de ter maculado a Criação, o pecado não conseguiu
frustrar os planos de Deus, como era intuito do demônio. Pelo contrário,
determinou Ele, em Seus insondáveis desígnios de misericórdia, estabelecer uma
ordem do universo ainda mais bela e esplendorosa, nascida da Encarnação e do
sacrifício de seu Filho Unigênito.
Na harmonia dessa nova ordem, haveria de ser preponderante o
papel da dor. Tendo sido mal correspondida a prova no Paraíso, a vida da graça,
trazida pela Redenção, não poderia conceber-se sem sofrimento, de modo que os
“degredados filhos de Eva” reparassem a falta de seus pais.
Era preciso que os homens adorassem um Deus abraçado à Cruz,
o Vir dolorum previsto por Isaías, cravado sobre o madeiro do opróbrio e da
ignomínia, e tivessem diante do Homem-Deus moribundo todas as ternuras e
venerações de que o coração humano é capaz.
Ele desceu a esta terra de exílio, atravessando as brumas do
pecado sem Se deixar tocar por ele, e, tomando sobre Si as nossas fraquezas,
com elas subiu ao Gólgota para ali consumar Seu holocausto e restituir aos
homens a paz e a felicidade que haviam perdido.
É bem verdade que, ao longo dos três anos de vida pública,
teve Ele um período brilhante aos olhos do mundo, durante o qual as multidões
iam à sua procura, sôfregas de ouvir Seus ensinamentos e beneficiar-se de Seus
milagres. Quando de Sua entrada solene em Jerusalém, a multidão cantava “hosana
ao Filho de Davi” (Mt 21, 9). Houve, inclusive, aqueles que quiseram
proclamá-Lo rei (cf. Jo 6, 15). Mas, em meio a todos os êxitos, a pior das
dores incrustava-se em Seu Coração, delineando Sua missão de Servo Sofredor e
deitando uma sombra sobre o futuro que O esperava: era a brutal falta de
correspondência daqueles que mais O deveriam reconhecer. “Veio para o que era
Seu, mas os Seus não O receberam” (Jo 1, 11).
Se, em Sua trajetória terrena, Nosso Senhor tivesse recebido
sempre todas as glorificações do Tabor e do Domingo de Ramos, algo da Sua
benquerença pelos homens e da Sua disposição de entregar a vida por eles teria
deixado de refulgir aos nossos olhos, e não compreenderíamos suficientemente o
mistério de amor que se discerne na Cruz e no Santo Sepulcro. “Ninguém tem
maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13).
Somos chamados a
colaborar na obra da Redenção
Ora, movido por Seu ilimitado amor aos homens, Jesus quis
também a participação deles na Sua dor. Ele não necessita de concurso humano
algum para redimir-nos, uma vez que o Preciosíssimo Sangue derramado na Paixão
bastaria para apagar os pecados de infinitas criaturas, mas deseja associar-nos
a Seus sofrimentos e assim fazer-nos partícipes de Seus méritos e de Sua
glória. É este o simbolismo da água que o sacerdote mistura ao vinho, na
preparação do cálice para o Santo Sacrifício. Nossas dores, de si, valem menos
até do que umas poucas gotas de água, pois, o mais das vezes, estão
contaminadas por imperfeições e misérias; mas unidas ao “vinho que engendra
virgens”, podem aquelas tornar-se uma “mesma e única bebida de salvação”.6
São Paulo mostrou ter penetrado a fundo nesse mistério,
quando escreveu em sua epístola aos Colossenses: “ Agora me alegro nos
sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo
na minha carne, por Seu corpo que é a Igreja” (Cl 1, 24).
Esta passagem é assim comentada por Tanquerey: “Certamente,
esta Paixão é, não somente completa, mas abundante e superabundante. No
entanto, como Jesus é a cabeça de um corpo místico, do qual todos nós somos os
membros, a Paixão deste Cristo místico se completa cada dia em seus membros
sofredores, e ela não estará terminada senão quando o último dos eleitos tiver
sofrido sua parte das dores de Cristo. [...] Então a dor terá um sentido, então
seremos verdadeiramente os colaboradores do Divino Salvador na obra da salvação
das almas”.7
Crisol onde Deus
lança as almas muito amadas
Levando isto em consideração, o papel da dor na vida humana
adquire uma perspectiva tão elevada que torna inteiramente fora de propósito
qualquer queixa ou inconformidade de nossa parte em relação às cruzes que Deus
tenha por bem nos enviar.
Na aceitação inteira da vontade divina encontramos o melhor
meio de restituir ao Criador a glória que Lhe foi negada pela primitiva
desobediência, manifestando-Lhe, por um ato de conformidade com Seus desígnios,
nosso tributo de amor e de reparação à Sua Majestade ofendida.
Ao mesmo tempo, se encetarmos as veredas da dor com ânimo
resoluto, é-nos oferecida a ocasião de alcançar preciosos benefícios para o
progresso de nossa vida sobrenatural. Dada a tendência natural do homem para o
egoísmo, facilmente ele se esquece de Deus quando a felicidade e o sucesso
parecem seguir seus empreendimentos. A adversidade é, pois, um poderoso auxílio
para purificar a alma do apego excessivo às criaturas, obrigando-a a considerar
a inanidade dos bens passageiros e voltar-se só para Deus, único Bem do qual
tudo se pode esperar.
Tais disposições perante o sofrimento conferem um caráter
respeitável àquele sobre o qual este se abate, tornando-o digno de admiração.
Nos dias de hoje, o sentido cristão da palavra “admirável”
vai-se perdendo, dando lugar a conceitos deturpados, segundo os quais o homem,
para alcançar a plena realização de sua personalidade, deve ser bem sucedido na
vida, correr de vitória em vitória, sem jamais ser incomodado por qualquer
revés ou dificuldade; só assim se tornará merecedor do aplauso e da aceitação
dos demais. A experiência histórica, porém, nos revela o contrário: os homens
sofredores, que ao longo de sua existência tiveram de enfrentar perigos,
angústias, incompreensões e até mesmo aparentes catástrofes, mas, fortalecidos
pela graça divina, acabaram vencendo, esses sim são verdadeiramente dignos da
aprovação dos demais homens e do beneplácito de Deus.
A dor é, pois, o crisol onde a Providência lança as almas
muito amadas, sobre as quais repousa uma especial predileção de Sua parte, para
delas recolher apenas a prata finíssima, livre de qualquer impureza. O Livro do
Eclesiástico deita uma luz sobre essa atraente temática: “Meu filho, se
entrares para o serviço de Deus, permanece firme na justiça e no temor, e
prepara a tua alma para a provação; humilha teu coração, espera com paciência,
dá ouvidos e acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da
infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera com paciência,
a fim de que no derradeiro momento tua vida se enriqueça. Aceita tudo o que te
acontecer. Na dor, permanece firme; na humilhação, tem paciência. Pois é pelo
fogo que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a Deus, pelo
cadinho da humilhação” (Eclo 2, 1-5).
Duas atitudes perante
a tragédia
Recebida com resignação, ou com sobrenatural entusiasmo, a
dor enaltece o homem e o convida a uma doação generosa de si mesmo, da qual, na
prosperidade, talvez ele não se julgasse capaz. Assim, pode haver circunstâncias
infelizes que, de modo inesperado, reduzam à derrota alguém anteriormente
coroado de êxito. Colocado diante de sua própria tragédia, ele poderá chorar,
lamentando seu fracasso, e afundar-se no abatimento e na revolta contra Deus;
ou então ele se erguerá com uma grandeza de alma triunfal, compreendendo a
beleza de seu infortúnio, já que este o aproxima mais da Divina Vítima do
Calvário.
Em palavras dirigidas aos peregrinos reunidos na Praça de
São Pedro, assim se exprimia o hoje Papa Emérito Bento XVI: “Jesus sofre e
morre na Cruz por amor. Deste modo, considerando bem, deu sentido ao nosso
sofrimento, um sentido que muitos homens e mulheres de todas as épocas
compreenderam e fizeram seu, experimentando uma profunda serenidade também na
amargura de árduas provas físicas e morais”.8
No instante em que o homem se abraça à Cruz e a toma como um
presente da munificência divina, manifesta-se todo o poder sublime e ao mesmo
tempo misterioso do holocausto. Sua dor torna-se fecunda e profícua, mais
eficaz na ordem da Comunhão dos Santos e na realização dos desígnios de Deus do
que seus esforços naturais ou suas demais obras apostólicas. Oferecido o
sacrifício, algo na alma germina, nasce e gera frutos, elevando-se diante de
Deus como oblação grata e imaculada, e dando ao homem uma alegria e uma paz
interior que todas as riquezas e glórias do mundo jamais poderão
proporcionar-lhe.
Nos dias cheios dos imponderáveis sérios e graves da Semana
Santa, acheguemo-nos aos pés da Cruz onde pende o Salvador, abandonado por
quase todos — sobretudo neste século em que tantos e tantos homens só procuram
o prazer e bem-estar pessoal — e coloquemos nas mãos da Mater Dolorosa, cuja
alma foi transpassada pelo gládio da dor, toda a nossa entrega e disposição de
padecer por Cristo e por Sua Igreja. As lágrimas de Maria purificarão nossa
oferta das eventuais misérias das quais possa estar manchada e a tornarão útil
para a edificação de Seu Reino e o triunfo de Seu Imaculado Coração.
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